Por Sylvia Colombo, da Folhapress
MONTEVIDÉU-URUGUAI – Enquanto países como Brasil e Argentina observam o avanço de leis e garantias de direitos civis empacar, quando não retroceder, o Uruguai se aproxima das próximas eleições presidenciais com um panorama diferente. Ainda que os principais candidatos ao pleito de 27 de outubro pertençam a espectros ideológicos diferentes, todos defendem legislações já aprovadas e colocadas em prática.
Entre elas, as que projetaram o país sul-americano como espaço de vanguarda na região nos últimos 15 anos: legalização do aborto pela vontade única da mulher (até a 12ª semana de gravidez, ou em período mais avançado, em caso de risco para a mãe), matrimônio igualitário, cotas para mulheres no Parlamento e estatização da produção e da distribuição de maconha.
Tanto o líder nas pesquisas, o ex-prefeito de Montevidéu Daniel Martínez, da coalizão de esquerda Frente Ampla, no poder desde 2005, quanto os liberais Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, e Ernesto Talvi, do Partido Colorado, não têm intenção de retroceder nas pautas progressistas conquistadas até aqui.
As discordâncias entre eles são basicamente na área de economia e envolvem propostas sobre como manter a taxa de crescimento do país, cuja média nos últimos 15 anos é de 3%. Educação, que já foi um dos pilares da sociedade uruguaia e hoje está em decadência, e segurança também são temas de discussão.
Existem algumas explicações para isso. Em primeiro lugar, o Uruguai é o país mais legalista da América do Sul. O atual presidente, Tabaré Vázquez, ele mesmo contrário ao aborto e à legalização da maconha, ao assumir, disse: “Sou contra ambas, mas, antes de tudo, sou um legalista, e essas leis foram aprovadas pelo Congresso uruguaio, portanto eu as implementarei porque manda a lei”. E o fez.
Para Julio Calzada, que foi secretário da Junta Nacional de Drogas de José ‘Pepe’ Mujica (2010-2015), “a sociedade está convencida de que a questão das drogas hoje é questão de saúde pública, não de repressão”, afirma à reportagem.
Mas há uma questão de fundo que explica essa excepcionalidade uruguaia. Segundo o historiador Aldo Marchesi, da Universidade da República, “a nova agenda de direitos civis que ressurgiu com força nos anos 1980 nada mais é que a agenda de Batlle y Ordóñez, que sempre esteve no imaginário e nos costumes” do país.
José Batlle y Ordóñez –que governou o país em dois períodos, de 1903 a 1907, e de 1911 a 1915– é considerado o fundador do Uruguai moderno, laico e vanguardista.
Apesar de ele ter pertencido ao Partido Colorado –um partido progressista e liberal–, até o esquerdista tupamaro Pepe Mujica se considera ‘batllista’. Na época em que a estatização da produção da maconha e a legalização de sua venda foram aprovadas, em 2013, o ex-presidente lembrou que a mudança nada mais era que uma cópia da lei que Batlle y Ordóñez havia feito com a aguardente.
Preocupado com a qualidade do álcool consumido, causa de altos níveis de cirrose e outras doenças, o então presidente ordenou que a petrolífera estatal Ancap também passasse a produzir aguardente de bom nível e distribuísse aos cidadãos uruguaios.
Já a separação entre igreja e Estado, realizada no país há mais de um século, e que parece ser letra-morta em diversas outras nações da região, vale de verdade no Uruguai. “Aqui nunca se formou um grupo de fiéis históricos. Não há ênfase em educação religiosa, a não ser em colégios privados católicos, o que colaborou para que o Estado laico se impusesse como diz a lei”, afirma o historiador Marchesi.
Além disso, Montevidéu também é um porto. Ao longo de sua história, recebeu imigrantes e ideias vindas de fora que foram absorvidas com facilidade. A mistura de falta de resistência religiosa e de inserção de costumes estrangeiros foi moldando o aspecto vanguardista do país.
Uma das curiosidades é que a Semana Santa, por exemplo, que atrai muitos visitantes ao Uruguai – o turismo é responsável por 2% do PIB – é chamada pelos locais de ‘semana do turismo’. O Natal é o ‘dia da família’. Tampouco se veem crucifixos nos prédios públicos e nas escolas do Estado. Na política, é proibido mencionar fragmentos dos evangelhos ou Deus publicamente.
Rodeado de outros países em que a tradição cristã ainda trava o avanço de leis de gênero, o Uruguai vê tais legislações como fato superado. Batlle y Ordóñez foi mais moderno que sua época e enfrentou percalços: debateu a proposta de uma lei de eutanásia, mas esta não vingou. Mas foi ele quem instituiu jornadas de trabalho de 8 horas, seguro-desemprego e divórcio pedido apenas pela mulher – regras ainda vigentes.
Seus feitos fizeram herdeiros. Em 1927, o Uruguai se transformou no primeiro país da América do Sul onde as mulheres podiam votar e também o primeiro a legalizar e regulamentar a prostituição. É por isso que a disputa presidencial atual, curiosamente, é a de quem é o mais ‘batllista’ entre os candidatos.
Se é a esquerdista Frente Ampla, que considera que seus princípios ainda não se estenderam suficientemente para tornar o Uruguai mais justo, e por isso oferece mais propostas de igualdade social a negros; se são os liberais, que debatem o modo como o país deve acolher imigrantes –tanto do Oriente Médio quanto da Venezuela; ou se é o Partido Colorado. Este, sim, passa por uma renovação.
Nos últimos anos, foi um partido de direita, com Pedro Bordaberry, filho do ex-ditador homônimo, como candidato nas últimas eleições. Agora, está sendo renovado por uma juventude mais progressiva e mais batllista. Uma coisa parece certa. Ganhe quem ganhar, os direitos civis conquistados nos últimos anos e que viraram uma referência na América Latina não sofrerão retrocessos.