O Dia Mundial da Água, celebrado no último dia 22 de março, nos remete a uma reflexão profunda contida em inúmeras celebrações em todos os países, assim como foi lembrado em Ato Ecumênico no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES. Com a presença de representantes de diferentes religiões, a celebração nos recordou a importância da água para todos os seres humanos e não humanos. A essencialidade da água é tão evidente para todos nos remetendo até à dimensão mística e espiritual inerente ao homem e à mulher.
Tal essencialidade da água é expressa de diversas formas, de acordo com a tradição religiosa: é irmã, é curadora, é purificadora, é unificadora. Ela nos coloca em contato com a divindade. Na mitologia egípcia, Osíris é a personificação da fecundidade, fonte total e criadora das águas. No mito grego da origem do mundo, o poderoso Oceano é uma das primeiras gerações de divindades. Em algumas tradições afro-brasileiras, Iemanjá é a divindade reinante sobre as águas do mar. Na tradição indígena brasileira, a água ganha representações importantes como a Iara, o Caboclo d’Água e o Boto Cor-de-Rosa.
Sem água não há vida. Uma frase repetida milhares de vezes em todos os contextos. Tal evidência foi mencionada também no mencionado Ato Ecumênico, uma vez que podemos viver sem alimentos até 50 dias, mas sem água não conseguimos viver mais de três dias. O caráter imprescindível e insubstituível deste elemento expõe a perversidade daqueles que buscam transformá-lo em mercadoria, pois não somos livres para decidir se dele precisamos. Sem essa liberdade de optar, o mercado da água nos obriga a comprá-la para poder sobreviver.
Assim, a mercantilização da água constitui uma tirania com alto grau de dominação, que contradiz até mesmo as leis gerais do mercado, que tem a liberdade de escolha como princípio. A privatização deste bem essencial torna-nos reféns de uma empresa que tem como diretriz principal lucrar. Para a empresa trata-se de um excelente negócio, pois nunca lhe faltará clientes, uma vez que estes não possuem liberdade de escolha. No entanto, para os clientes trata-se de uma abominável prisão.
Diante disso, água também é dignidade humana, de forma que a sua falta é agressão contra o ser humano. Por isso, a água nunca deveria ser negada ao homem, à mulher, à criança, ao idoso, principalmente quando tal negação visa à acumulação desmedida. Com tal dignidade a água não deveria ser privatizada, mas manter-se como bem comum. No Ato Ecumênico também se lamentou a falta da água para as famílias como uma agressão à sacralidade da água e uma ferida que afeta as diversas espiritualidades humanas.
Em Manaus, a água sofre inúmeras agressões: o projeto do Porto das Lajes (destruição do Encontro das Águas), a privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, a poluição dos igarapés e a má gestão dos recursos hídricos. “Nós estamos privatizando a água, nós estamos roubando a água, nós estamos matando a água” (Dom Leonardo Ulrich Steiner). O Ato Ecumênico nos mostrou que a espiritualidade das águas nos oferece algo diferente, nos inspirando mais democracia, mais união, mais justiça e cuidado com a natureza.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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