A tarifa social constitui outro grande imbróglio da privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário na cidade de Manaus. A privatização foi realizada em julho de 2000, mas a tarifa social começou a aparecer nos documentos oficiais somente em janeiro de 2007, depois da trágica atuação da multinacional francesa Lyonnaise des Eaux, que se retirara do empreendimento desmoralizada pelas constatações de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI 2005), que recomendou a quebra do contrato de concessão dos serviços de água e esgoto na cidade.
A adoção da tarifa social é resultado também de uma determinação da Lei do Saneamento Básico (nº 11.445), de 05 de janeiro de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico: abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e drenagem pruvial.
O Termo Aditivo ao Contrato de Concessão de Prestação dos Serviços Públicos de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Município de Manaus, celebrado em 10 de janeiro de 2007, assinala que “compete ao Poder Concedente, diante da relevância dos serviços objetos deste contrato, estabelecer e implantar, conjuntamente com a Concessionária, a tarifa social para as famílias de baixa renda, bem como critérios de elegibilidade e forma de compensação financeira para esta modalidade de prestação dos serviços, observando o princípio do equilíbrio econômico-financeiro da concessão.”
Por resistência da empresa e cumplicidade do poder púbico, esta determinação não foi implementada naquela época, prolongando o sofrimento da população de baixa renda, que sobrevivia com dificuldades, a despeito de inúmeros direitos essenciais violados.
Em fevereiro de 2012, a tarifa social ainda não tinha sido implantada na cidade, sendo objeto de inquéritos civis impetrados pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM). Neste ínterim, o MP-AM cobrou explicações do Poder Municipal e da Concessionária privada sobre a demora na implantação do benefício, destacando as controvérsias da privatização dos serviços de água e esgoto na cidade, que já apresentava um histórico eivado de irregularidades (Portaria 210/2012).
O Quarto Termo Aditivo ao Contrato Concessão de Prestação dos Serviços de Saneamento Básico no Município de Manaus, celebrado em 17 de maio de 2012, confirmou o estabelecimento da tarifa social, numa razão de 50% da tarifa mínima de 0 a 10m³/mês. Sem efeito prático, esta determinação voltou a ser ratificada no Quinto Termo Aditivo ao Contrato de Concessão dos Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário, assinado em 03 de abril de 2014.
Naquela época, à revelia da lei, a implantação do benefício da tarifa social continuou sendo ignorada pela concessão privada dos serviços de água e esgoto, assim como pelos poderes públicos, que se omitiam diante daquela grave violação, ao abandonarem as famílias de baixa renda, que não tinham condições financeiras de arcar com os custos exorbitantes da ganância da empresa privada de água e esgoto.
Diante das queixas e denúncias de constante violação dos direitos essenciais, o beneficio da tarifa social é implementado somente em abril de 2014, a partir do Decreto-Lei nº 2.748, que estabeleceu o desconto de 50% do valor cobrado sobre a faixa de consumo de 0 a 15m³/mês para as populações mais pobres. Direcionada para os beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF), a tarifa social, segundo o Decreto, deveria contemplar um total de 128 mil famílias na cidade de Manaus.
No entanto, o cumprimento do decreto de nº 2.748/2014 ainda encontra animosidade por parte da empresa, que persiste aferrada aos seus próprios interesses em detrimento dos interesses das comunidades. Um ano depois deste decreto, apenas 5 famílias tinham sido beneficiadas pela tarifa social, levando o Vereador Waldemir José (Partido dos Trabalhadores) a propor o Projeto de Lei nº 069/2015, que obriga a empresa realizar ampla divulgação do benefício e dos critérios necessários para o seu auferimento.
Ao sabor de tanta luta, embora tenha aumentado o número de famílias contempladas pelo benefício da tarifa social, o descumprimento deste direito ainda é notável em Manaus. Atualmente, entre as 128 mil famílias com direito de usufruir do benefício, somente 16.339 são contempladas, segundo os últimos dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS 2017).
As dificuldades na implantação de um direito tão básico e essencial não podem ser explicadas pelos entraves burocráticos, mas pela desmentida ambição da empresa privada que busca maximizar os seus lucros e resiste em conceder o benefício da tarifa social aos seus devidos donos. A lógica empresarial se apresenta na sua feição mais perversa não se dobrando nem diante da miséria do ser humano. Ela colabora, assim, para a ampliação da massa de excluídos, num setor essencial que deveria ser protegido pelo Estado e pela sociedade, como forma de manter um mínimo de liberdade diante das forças devastadores do mercado.
A luta pela tarifa social, buscando que os beneficiários do Programa Bolsa Família sejam respeitados no seu direito não pode arrefecer a consciência de que os grupos sociais que precisam deste subsidio superam as estatísticas oficiais. A crise política e social vigente no Brasil ampliou o número de pessoas que se encontra abaixo da linha da extrema pobreza, precisando que o governo as incorpore em programas de distribuição de renda. Até o Banco Mundial tem reconhecido que o governo brasileiro precisa priorizar o socorro às famílias que estão na pobreza, mas que ainda não são atendidas pelo Programa Bolsa Família (BBC NEWS, 14.12.2019).
Diante deste cenário, é óbvio que a lógica do retorno econômico à qual se quer submeter a política de saneamento básico brasileira não responderá ao desafio da universalização do abastecimento de água e saneamento.
A preponderância do paradigma do mercado distancia cada vez mais a humanidade dos princípios nobres da liberdade, igualdade e fraternidade. Por outro lado, a humanidade é provocada a atuar na contramão desta concepção, buscando formas alternativas de bem viver, implementando projetos democráticos de gestão em que a comunidade pode decidir sobre o seu próprio destino.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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