Cada vez mais cidades, regiões e países por todo o mundo estão a optar por fechar o livro das privatizações no sector da água e a remunicipalizar serviços, retomando o controle público da gestão da água e do saneamento. Em muitos casos, isto é uma resposta às falsas promessas dos operadores privados e ao seu fracasso em colocar o interesse das comunidades acima do lucro. Nos últimos 15 anos houve pelo menos 180 casos de remunicipalização em 35 países, tanto do Norte como do Sul, incluindo casos de alto perfil na Europa, Américas, Ásia e África (Unidade Internacional de Pesquisa de Serviços Públicos; Instituto Transnacional; Observatório Multinacional, Janeiro de 2015).
Apesar de mais de três décadas de incansável propaganda a favor das privatizações e das parcerias público-privado (PPP), por instituições financeiras internacionais e governos, parece agora que a remunicipalização é uma opção política que veio para ficar. A experiência direta com problemas comuns na gestão privada da água – desde a falta de investimento em infraestruturas, até ao aumento de tarifas e danos ambientais – persuadiu comunidades e políticos, que o sector público está melhor habilitado a prestar um serviço de qualidade aos cidadãos e a promover o direito humano à água.
A remunicipalização consiste na devolução dos serviços de água e saneamento anteriormente privatizados, ao poder local ou, mais genericamente, ao controlo público. Tipicamente, isto acontece após os contratos estabelecidos com as autarquias locais terminarem, ou através da sua não renovação, mas este processo não ocorre exclusivamente a nível local. As autoridades regionais e nacionais têm uma considerável influência sobre as políticas e financiamento de serviços, e, em alguns casos, atuam diretamente como operadores nos serviços de água, portanto o processo desenvolve-se dentro de um contexto mais amplo.
Seja qual for a sua forma ou escala, a remunicipalização é geralmente uma reação coletiva contra a insustentabilidade da privatização da água e das PPP. Confrontadas com a impopularidade da privatização, as empresas privadas utilizam o marketing e a propaganda para levar as pessoas a acreditar que as concessões, contratos de arrendamento e outras PPP são muito diferentes de uma privatização; não são. De facto, todos estes termos se traduzem na transferência do controlo dos serviços e da sua gestão para o sector privado. Os políticos têm de estar conscientes dos elevados custos e riscos inerentes à privatização da água, e como tal, têm muito a aprender com a experiência das autoridades públicas que optaram pela remunicipalização e estão a trabalhar para desenvolver uma gestão pública da água eficiente e democraticamente responsável.
Tal como é ilustrado pelos casos explicados abaixo, os fatores que levaram à remunicipalização são semelhantes por todo o mundo. As falsas promessas das privatizações que levaram à remunicipalização incluem: desempenho medíocre das empresas privadas (Por exemplo, Dar es Salaam, Accra, Maputo), sub-investimento (Por exemplo, Berlim, Buenos Aires), disputas sobre custos operacionais e aumento de preços (Por exemplo, Almaty, Maputo, Indianápolis), aumento brutal de tarifas (Por exemplo, Berlim, Kuala Lumpur), dificuldade em monitorizar os operadores privados (Por exemplo, Atlanta), falta de transparência financeira (Por exemplo, Grenoble, Paris, Berlim), despedimento de mão-de-obra e deficiente qualidade de serviço (Por exemplo, Atlanta, Indianápolis).
Não é por acaso que a França, o país com a mais longa história de privatização da água e sede das maiores multinacionais do sector, apresenta tantos casos de remunicipalização. Os municípios e populações franceses experimentaram em primeira-mão o “modelo de gestão privado” que a Veolia e a Suez exportaram por todo o mundo. Nos últimos anos, várias cidades francesas decidiram seguir os passos de Grenoble e Paris e retomar o controlo dos seus serviços de água. Um grande número de contratos está-se a aproximar dos seus prazos de renovação nos próximos anos, sendo expectável que muito mais cidades francesas optem pela remunicipalização.
Eliminando a lógica de maximização do lucro, imperativa no sector privado, a remunicipalização da água leva com frequência à melhoria do acesso e da qualidade dos serviços de água. A igual ou maior eficiência dos serviços públicos de água, bem como os preços mais baixos, pode ser observado em casos tão diversos como os de Paris (França), Arenys de Munt (Espanha) e Almaty (Kazakhstan). Em alguns casos os novos operadores públicos também aumentaram dramaticamente o investimento nos sistemas de água, como é o caso de Grenoble (França), Buenos Aires (Argentina) e Arenys de Munt (Espanha), onde o município e o novo operador público reestruturaram o sistema tarifário de forma a garantir o acesso à água às famílias com rendimentos mais baixos.
A remunicipalização contribui para o fortalecimento da responsabilização e da transparência. Em Paris e Grenoble (França), os novos operadores públicos introduziram formas avançadas de participação dos cidadãos. Em primeiro lugar, representantes da sociedade civil têm assento no Conselho de Administração juntamente com representantes municipais, com iguais direitos de voto. Isto permite à sociedade civil participar ativamente na gestão deste serviço público essencial e otimizar as operações às necessidades e interesses locais. Em segundo lugar, foram criados observatórios abrindo espaço aos cidadãos para a participação em decisões estratégicas ao nível dos investimentos, opções tecnológicas e definição de tarifas. Ambas as cidades consideram que o pleno acesso à informação é condição fundamental para garantir a responsabilização, a transparência e a participação.
A remunicipalização é uma oportunidade para reinventar os serviços públicos de água e torná-los mais eficientes e escrutináveis pela comunidade local. Operadores públicos, associações regionais e nacionais do sector da água, bem como organizações civis, estão cada vez mais bem preparados para apoiar os processos de remunicipalização. A solidariedade, a cooperação e parcerias entre autoridades públicas podem desbloquear o caminho para serviços de água mais sustentáveis, inclusivos e democráticos.
As situações que têm provocado a remunicipalização dos serviços de água e esgoto ao longo do mundo, ou seja, o retorno destes serviços dos gestores privados para os gestores públicos, impõe a necessidade de avaliar a gestão dos serviços de água e esgoto em Manaus, considerando o conjunto da experiência, a partir de julho de 2000. A repetida mudança de gestor privado por falta de eficiência em alcançar as metas contratuais constitui um dos aspectos que nos faz pensar na qualidade do funcionamento da política de privatização adotada em Manaus.
Ao longo das últimas duas décadas quatro empresas privadas de grande porte assumiram a responsabilidade sobre a gestão dos serviços de água e esgoto (Lyonnaise des Eaux, Solvi, Águas do Brasil e, atualmente, Aegea Saneamento e Participações), todas elas saindo da cidade sem alcançar as metas previstas e sem realizar os investimentos prometidos. Todas elas, propagando um discurso enganador, saíram da cidade desmoralizadas e desfrutando de imagens negativas perante a sociedade manauense.
Nos últimos vinte anos, a cidade de Manaus usufruiu de serviços precários de água e esgoto, experimentando na própria pele a falácia da eficiência dos serviços privados. Inevitavelmente, conclui-se que a lógica do mercado, ao ser implantada indiscriminadamente nos serviços públicos, não fortalece os valores democráticos e do bem comum, mas, ao contrário, gera exclusão, segregação social e amplia as desigualdades já existentes.
A experiência dos serviços privados de água e esgoto destaca-se pela repetida ocorrência de casos como, o desabastecimento nas periferias, os vazamentos de encanações e rupturas de adutoras, as cobranças abusivas, a exagerada elevação das tarifas, o desperdício de água tratada, a falta de transparência na gestão dos serviços, a morosidade na implantação da tarifa social, a poluição dos igarapés e rios (lançamento de esgotos) e o abandono e indiferença em relação às comunidades mais pobres.
Por outro lado, a eficiência destas empresas em ampliar os seus lucros e rendimentos é notável. Em Manaus, as empresas privadas de água e esgoto lucraram R$ 1.676,74 bilhão de reais nos últimos 5 anos, enquanto investiram na manutenção e expansão dos serviços somente R$ 311,44 milhões de reais no mesmo período (SNIS 2017).
Adotando a premissa da naturalidade da desigualdade, em que se defende a aceitação passiva da pobreza, da miséria e da exclusão, a Prefeitura Municipal de Manaus (Poder concedente) ratifica as iniciativas das empresas de saneamento da cidade, corroborando a injustiça e a exploração realizadas por elas. Esta atitude é reforçada quando os poderes públicos locais se fecham aos clamores da população, assumindo uma postura de indiferença em relação à tendência global da remunicipalização dos serviços de água e esgoto.
A remunicipalização dos serviços de água e esgoto, que ocorre em vários países do mundo, é um sinal de que a humanidade busca uma forma mais civilizada de viver, não suportando mais a animosidade do mercado, que avança sobre todas as dimensões da vida. Os governos precisam se libertar da zona de cooptação das grandes empresas, se aproximar das demandas populares, buscando construir gestões mais democráticas, que respondam às necessidades mais básicas dos povos e protejam as populações mais vulneráveis. Assim, é possível dar passos civilizatórios mais significativos.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.