Certamente a definição de homem cordial foi uma das principais contribuições de Sergio Buarque de Holanda ao país. A partir dos estudos do pensador brasileiro, as relações sociais passaram a ser abordadas sob o prisma da principal característica da civilização que se formava no Brasil, a cordialidade do brasileiro.
Para o autor de Raízes do Brasil (1936), o brasileiro carrega uma herança cultural de Portugal, miscigenada com traços fortes da nossa raiz indígena e africana, tornando-nos mais voltados ao patriarcalismo familiar e o apego às amizades. Essa é a face mais positiva dos estudos do autor a respeito das relações sociais do brasileiro “cordial”, sua visão de mundo e a disposição em valorizar as relações privadas, em detrimento das leis e regulamentos.
A face negativa, segundo estudiosos das obras do historiador, está principalmente nas relações políticas. Ela própria, desde aquele período, é tomada como negócio privado, cujos objetivos restringem-se a apropriar-se de parcelas do Estado e distribui-las aos mais chegados. A prática de levar parentes e amigos a ocupar cargos públicos também é um hábito do homem cordial, mantido até mesmo nos mais altos escalões da República.
Uma outra característica dessa herança cultural brasileira é incapacidade de diálogo justo entre governante e governados, já que para o homem cordial a esfera pública é uma extensão da esfera privada, tornando difícil a aplicação das leis, quase sempre elaboradas em favor de grupos de interesses econômicos e privados.
De fato, essa ausência de debate na elaboração das leis é um tópico relevante para explicar o comportamento do homem cordial brasileiro. Se não há participação nos debates, não há comprometimento e interesse na sua observação. A sociedade não vê as ações públicas como a busca do bem comum. Ao contrário, as ações da “corte” obviamente são voltadas para a manutenção do poder das classes dominantes.
Nesse sentido, sempre houve forte resistência por parte de governantes e gestores em prestar contas da aplicação das verbas. Essa é uma das principais facetas negativas da formação sociocultural do país. Se os governantes não cumprem as normas – e eles também são fruto do comportamento do homem cordial – isso encoraja o chamado jeitinho brasileiro, no qual se pretende a burla ou drible nas obrigações cotidianas, justificando do furto de energia elétrica ao descumprimento de direitos trabalhista ou fraudes tributárias.
Assim, o celebrado autor prestou grande colaboração ao captar aquela que seria a principal característica do brasileiro em suas relações privadas e familiares, a afetuosidade e o carinho no trato entre pessoas de um mesmo círculo.
No entanto, a controvérsia surge quando esse comportamento extrapola o privado e se espalha pelo patrimônio público, tornando particular as decisões, os bens e os interesses coletivos.
Cabe a todos nós, cidadãos, reafirmar o lado generoso e positivo do homem cordial e renegar com veemência o comportamento de gestores e governantes que, comumente, confundem suas funções e os bens que administram com coisa privada.
Transparência permanente e irrestrita, discussões sobre prioridades de governos, mais democracia direta na elaboração de leis, além do cumprimento de regulamentos, eficiência do gasto público e, obviamente, punição exemplar àqueles que derem causa a prejuízos ou se apropriarem do dinheiro público.