Atualmente, a privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário constitui um dos eixos de discussão que perpassa o Brasil. A proposta de privatização destes serviços começou a ser discutida no governo Michael Temer, mas ainda não estávamos envolvidos com os problemas da pandemia e a sociedade civil conseguiu se organizar para mostrar as desvantagens deste projeto. Os movimentos sociais, entidades civis e organizações de defesa dos direitos humanos denunciaram que tal proposta iria aprofundar a exclusão social, deixando as populações mais pobres à mercê do mercado e aumentando as dificuldades de acesso a estes bens essenciais para a vida. Tal mobilização teve como resultado a sensibilização dos parlamentares e a consequente caducidade da proposta.
Servindo aos interesses dos banqueiros e grandes empresários e estabelecendo aliança com parlamentares moralmente conservadores e economicamente liberais, o governo Bolsonaro fez um acordo para aprovar o projeto privatista. Além disso, aproveitando-se da desmobilização da sociedade civil provocada pela tragédia da pandemia, os defensores da privatização viram um cenário apropriado para aprovar o seu projeto antissocial e injusto. Não tendo oportunidade de realizar um debate democrático, uma vez que a morte e o sofrimento já tomavam conta do território nacional, a sociedade brasileira foi covardemente golpeada com a aprovação do Projeto de Lei 4162/2019.
O golpe ardiloso se concretizou quando o presidente Bolsonaro quebrou o acordo realizado com os parlamentares e vetou o artigo 16º que aliviava os impactos negativos da privatização nos próximos anos. O traidor vetou a possibilidade das empresas públicas renovarem, pela última vez, os contratos com Estados e Municípios para viabilizarem melhorias nos serviços de água e esgoto do país. Se o astucioso veto presidencial prevalecer, as empresas públicas não terão tempo de se reorganizar e as populações serão, de imediato, entregues às garras das empresas, que atuam com habilidade para obter lucros cada vez maiores.
Se já são mal atendidas pelos Estados, com a privatização as periferias e pequenas cidades dos interiores serão totalmente abandonadas, pois elas não possuem o que a iniciativa privada busca: retorno financeiro imediato. As periferias de Manaus vivem esta situação desde o ano 2000, quando seus serviços de água e esgoto foram privatizados. A iniciativa privada, ao longo dos últimos 20 anos, desempenha serviços precários, colocando a cidade entre as piores metrópoles do Brasil (SNIS 2018). Além de realizar um abastecimento hídrico ineficiente e deixar grandes áreas da cidade sem água potável, a iniciativa privada disponibiliza serviços de esgotamento sanitário somente para um setor privilegiado, que representa 12,43% da população.
A experiência do Estado de Tocantins não é diferente. Depois de privatizados, mais de 70 pequenos municípios foram devolvidos ao Estado por não oferecerem os retornos econômicos esperados pela iniciativa privada. A empresa ficou somente com os municípios mais lucrativos e populosos, obrigando o Estado prestar serviços aos mais deficitários e menos rendosos. A lógica empresarial é clara: se não paga não leva. Esta lógica não dialoga com os direitos fundamentais e reduz o cidadão a um mero cliente anônimo, sem rosto e sem história.
Pertencentes a grandes empresários, as grandes mídias silenciam sobre esta realidade, não mostrando as desvantagens da privatização. Projetando a privatização como a única solução para os problemas do saneamento básico, elas escondem da opinião pública a precariedade dos serviços das empresas, omitem os recursos públicos que elas embolsam, acobertam os benefícios que elas recebem em detrimento da população e ocultam as ilegalidades e crimes ambientais cometidos em nome do dinheiro.
Num conluio de classe, as grandes emissoras de rádio e televisão, a grande imprensa e redes sociais enganam a população, manipulando as sensibilidades em favor de um projeto elitista que beneficia os seus proprietários. Defendendo uma economia que produz desigualdades, elas anulam as experiências comunitárias que buscam uma sociedade alternativa e minimizam aquelas que não aceitam a mercantilização da natureza e o lucro a qualquer custo.
Em Manaus, os poderes estadual e municipal realizam uma gestão excludente que beneficia somente aos mais ricos. Fecha os olhos para os serviços precários da concessionária Águas de Manaus (Aegea Saneamento), que continua lançando os esgotos nos igarapés e negando a tarifa social aos que têm direito. Conivente com a irresponsabilidade socioambiental da empresa, o poder municipal legitima e promove um projeto de exclusão, perpetuando a falta de água nas periferias e bairros pobres da cidade.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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