Em reunião na semana passada no Conselho Municipal de Cultura, entre outras coisas, começamos um debate sobre o carnaval de Manaus, escola de samba, blocos… Surgiu o seguinte questionamento: por que os blocos de carnaval da cidade de Manaus não fazem mais seus percursos pelas ruas, como a bem pouco tempo ainda tínhamos a saída irreverente do Bloco das Piranhas, da Bica, do Boulevard? Hoje, esses blocos não têm mais a prerrogativa que deve ser inerente a uma banda de carnaval, que é brincar pelas ruas, desfilar em cortejos irreverentes e ousados, brinca de ser feliz até a quarta-feira de cinzas.
Respostas formais da representante da Secretaria de Cultura do município: “Quem ordena toda essa parte é a Polícia Militar”. Como assim? “Só faz o que a polícia determinar para cada espaço”. “Então, deixou de ser carnaval?”, questionou em sua ironia bem humorada e inteligente o presidente do conselho, jornalista, escritor e dramaturgo, Márcio Souza. “O carnaval é a transgressão, se é ordenado pela polícia, seria uma operação carnaval?” Silêncio na mesa de reunião.
Estamos vivendo em dias confusos, ou seja, o carnaval é ordenado pela polícia; o Carnaboi, que foi o boi de carnaval, as escolas de samba, não têm mais carnaval de acesso, O Galo de Pernambuco, agora, tem também em Manaus. O agronegócio quer impedir um desfile na Sapucaí no Rio de janeiro, O prefeito de São Paulo cobra patrocínio para permitir e limitar número de brincantes nas bandas e blocos. Qual é mesmo a nossa referência nessa cultura diversa e popular, nosso patrimônio “O Carnaval”?
Os arengueiros
Um grupo de jovens negros descia o morro no Rio de Janeiro, para brigar, para bater, para apanhar para desafiar a polícia e ser preso, não se trata de arrastões rebeliões, ou quebra de vitrines de lojas, mas dos Arengueiros, bloco de foliões que foi precursor da “Fundação Estação Primeira de Mangueira. Entre eles estavam Cartola. Personagens e fatos como esses fizeram historia do samba. “Uma história do samba – as origens” (Companhia das Letras), do jornalista e escritor cearense Lira Neto, cobre a trajetória do gênero dos primórdios até os anos de 1930. O carnaval começa no auge de um grupo social que sentia todo peso do racismo da sociedade e da política urbana “higienista” de Estado.
Aquele carnaval que passou
Hoje não temos mais o lança perfume, conhecido em Manaus como loló; confete e serpentina estão fora de moda, os blocos e cordões foram substituídos por bandas e shows patrocinados em sua maioria por grandes empresas de bebidas, que, diga-se de passagem, ajudam bastante no trânsito louco que o bafômetro não dá conta. Os arengueiros de hoje não se tornam compositores de samba, estão à margem na próxima esquina, uma turma que faz o bloco do “ei você aí passa o celular ai”.
O tempo não volta, mas o pensamento me leva para os carnavais de Manaus das tradicionais bandas, dos bailes do Olímpico, do Nacional, do Rio Negro, e das brincadeiras dos blocos de sujo, dos bailinhos infantis do Ipiranga e do clube Sírio-Libanês, da facilidade de ganhar uma fantasia na escola de samba, que era verdadeiramente comunitária. A Banda da Bica com todos os irreverentes fundadores animava a cidade com a presença do distinto Armando Soares, o portuga mais amado de Manaus. Lembro-me da briga do Deocleciano Bentes, o Deco, para forçar a saída da banda pelas ruas do Centro, em momento que o discurso da gestão técnica começava a ganhar força no “ordenamento do carnaval”, uma ideia do século 19. “A cidade linda”, aquele velho argumento de que carnaval tem que ter “regras”, tapumes ou algo semelhante, principalmente se for pra matar a irreverência natural desses dias de folia. Sem confete ou serpentina, o lança sumiu, as máscaras já não são mais de papelão, parecem permanentes, e se renovam a cada operação de destaque da polícia federal, geralmente a cara de pau de um lalau pego em corrupção, vira moda no carnaval.
Resistência do samba
As escolas de samba do Rio de janeiro, São Paulo e Manaus, apesar dos pesares, têm conseguido manter a tradição dos desfiles, gerando renda através do turismo e contratando trabalhadores das diversas produções artísticas, cada vez mais livres e independentes do Estado, inclusive com temas que dão visibilidades para fatos históricos e acontecimentos atuais, como no caso da Imperatriz Leopoldinense, com o tema sobre a degradação e exploração do Xingu.
Artistas do boi no carnaval
Uma ilha de sonhos fantasias e criações, quem diria, é o que há de novo no grande espetáculo do carnaval brasileiro. Não existe mais escola sem alegorias feitas pelos artistas parintinenses. Uma desenvoltura artística que se repete em escolas de samba de São Paulo e Rio de janeiro. Infelizmente, nosso carnaval de Manaus ainda não consegue pagar as equipes dos bois, que mostram seus magníficos talentos nas telinhas das TV do mundo todo, com suas alegorias surpreendentes. Há de chegar o dia em que as escolas de Manaus poderão ser as primeiras a contratar as equipes de artistas parintinenses, que já são o grande destaque dos espetáculos dos bois de Parintins e do carnaval de Rio e São Paulo. Esperamos que a recém-assinada Lei de Incentivo à Cultura possa render patrocínios significativos para os próximos anos de nossas escolas de samba e suas comunidades.
Carna Baré
Sobre o carnaval de Manaus, penso que a cultura popular desprovida de suas potências criadoras e anárquicas torna-se “festa no carnaval”, o nosso boi de Parintins não é carnaval, é boi-bumba. Os artistas do boi podem e devem trabalhar em junho, no boi, e, em fevereiro, no carnaval de Manaus.
Bate forte o tambor que o Brasil é nosso!