
Uma das mais gritantes contradições vivenciadas no Brasil contemporâneo diz respeito ao fato de sermos um dos países que mais produz alimentos no mundo e ao mesmo tempo integrarmos a triste lista das nações que configuram o Mapa da Fome no planeta. Recentemente, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa revelou em entrevista jornalística que o Brasil produz comida suficiente para estimados 1,6 bilhão de pessoas, ou seja, um excedente de 1,4 bilhão, já que somos 200 milhões de brasileiros. Por outro lado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, temos 10,3 milhões de pessoas sem acesso regular à alimentação básica.
O Brasil é hoje o terceiro maior produtor de alimentos do planeta, produzindo mais de 240 milhões de toneladas no ano passado, ficando atrás apenas da China e dos EUA. Segundo a Associação Brasileira de Indústria de Alimento – ABIA, o Brasil exportou comida para mais de 180 países, movimentando mais de 34,1 bilhões de dólares no ano passado. Além disso, o Brasil é o segundo exportador mundial de alimentos industrializados em volume e o quinto em valor. Nós somos o primeiro produtor e exportador mundial de suco de laranja; o segundo produtor e primeiro exportador mundial de açúcar; segundo produtor e primeiro exportador mundial de carne bovina e de carne de aves.
Contraditoriamente, o Mapa da Fome revela que temos 10,3 milhões brasileiros que passam grave situação de fome. Neste total de famintos brasileiros, 7,7 milhões vivem nas cidades. Nas áreas rurais, 2,6 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar grave. Proporcionalmente, estes números representavam, respectivamente, 23,3% do total da população que vivia em área urbana e 40,1% da população rural. Entre os brasileiros que passam grave situação de fome, 4,3 milhões vivem na Região Nordeste, o que corresponde a 41,5% do total de famintos no país. No entanto, se considerada a proporção de domicílios, a Região Norte é a que lidera o ranking. Aqui, 10,2% dos domicílios estão em severa situação de fome.
O IBGE também identificou que metade das crianças com até 4 anos de idade vive em domicílios com algum tipo de insegurança alimentar. Na faixa etária entre 5 e 17 anos, passou da metade (50,7%) o total destes jovens vivendo sob algum tipo de insegurança alimentar. Na faixa etária entre 18 e 49 anos, este percentual foi de 41,2%, enquanto no grupo de 50 a 64 anos este percentual caiu para 34,6%. A menor proporção de pessoas vivendo sob algum tipo de insegurança alimentar estava na faixa etária acima de 65 anos – 21,3%. Ao todo, cerca de 2,7% dos idosos com mais de 65 anos tiveram insegurança alimentar grave no período da pesquisa, ou seja, passaram fome entre 2017 e 2018.
Com a implementação de programas de combate à fome, o Brasil conseguiu sair do Mapa da Fome em 2014, mas a partir de 2016 tal preocupação foi cada vez mais colocada em segundo plano, de forma que hoje integramos novamente nesta constrangedora situação. Este cenário é resultado de políticas implantadas a partir do governo de Michael Temer, que aprovou o Teto de Gastos, reduzindo o investimento em áreas essenciais da sociedade. Dentre estas políticas, houve um desmonte do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) cujos recursos foram duramente cortados. Com este PAA, o governo comprava grandes quantidades de alimentos de pequenos produtores e os distribui para pessoas de baixa renda.
O enfraquecimento do Programa de Apoio ao Agricultor Familiar – Pronaf, também muito contribuiu para estabelecer esta situação de penúria, pois com a redução dos empréstimos com juros subsidiados, não havia como comprar a produção, os fertilizantes e as sementes dos pequenos agricultores. E outros programas, por exemplo, de captação de água da chuva com cisternas, também caíram drasticamente.
Para agravar mais a situação da fome, o governo de Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho de Segurança Alimentar (Consea), justamente o órgão que dialogava com a sociedade civil na construção de políticas de segurança alimentar no Brasil. Por medida provisória em janeiro do ano passado, Bolsonaro extinguiu o Consea, criado em 1993 como parte da criação de um marco legal para o combate a fome. O órgão era formado por 60 voluntários — 40 representantes de ONGs e movimentos sociais e 20 do governo.
Saímos em poucos anos de uma situação em que o problema da fome estava controlado para um cenário em que milhões de pessoas vivem grave insegurança alimentar. Constar no Mapa da Fome significa que mais 5% da população da Brasil passa fome. Com a pandemia esta situação piorou ainda mais devido à crise econômica, que não tem previsão de superação. O auxílio emergencial, que o Governo Federal foi obrigado a pagar, aliviou o problema, mas não resolve.
Para que o problema da fome seja resolvido é necessário criar de uma política de Estado, que intervenha de maneira permanente. Além disso, é preciso implantar um programa de transferência de renda, visando garantir a satisfação das necessidades básicas da população. De fato, a alimentação saudável é um direito fundamental que consta na Constituição Federal. Ademais, é urgente que se preconize uma política de distribuição de renda, para reduzir as desigualdades sociais brasileiras. A geração de emprego é fundamental para que isso aconteça.
Para resolver o problema da fome é preciso também incentivar a produção dos pequenos agricultores, concedendo-lhes créditos facilitados, uma vez que são eles que produzem a maioria dos alimentos que consumidos nas mesas. O fortalecimento da agricultura familiar é essencial para que saiamos desta situação. Realizar uma reforma agrária também é essencial para construímos um país mais justo. Infelizmente, o atual governo só tem olhos para atender as necessidades do agronegócio, que destrói as florestas, contamina as águas e pouco contribui para melhorar a qualidade de vida do conjunto da população.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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