Por Cristina Camargo, da Folhapress
SÃO PAULO – Em carta aberta para a sociedade brasileira, a direção da vinícola Aurora afirmou nesta quinta-feira (2) que está envergonhada com os acontecimentos recentes envolvendo sua relação com a Fênix Prestação de Serviços, uma das duas empresas investigadas por manter trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.
“Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seríamos. O trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora isso que fizemos”, diz trecho da carta, publicada no site da vinícola.
Os trabalhadores, que prestavam serviços para as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi, estavam em um alojamento onde viviam sob ameaças e vigilância armada e de onde só podiam sair para trabalhar, segundo disseram ao Ministério Público do Trabalho e ao Ministério do Trabalho e Emprego, que investigam o caso.
Na carta, a Aurora pede desculpa aos trabalhadores, afirma repudiar a situação e diz que a exploração é intolerável.
“A testa daqueles que fazem o Brasil acontecer, todos os dias, às custas do seu suor honesto, deveria estar sempre erguida, orgulhosa, e nunca subjugada pela ganância de uns poucos”, diz o texto.
A vinícola pediu desculpa também ao “povo brasileiro” e prometeu rever práticas e adotar medidas para que o episódio investigado não volte a acontecer.
Segundo a carta aberta, a empresa está trabalhando em um programa de mudanças para qualificar a relação com os parceiros e assumir o controle de todos os processos de produção que a envolvem.
“Estamos aqui, com a mente e o coração abertos, a começar tudo de novo, se for preciso, como fizeram nossos antepassados ao aqui desembarcarem”, afirmou a empresa, criada por imigrantes italianos no início do século passado.
As três vinícolas já haviam divulgado nota dizendo que repudiam violações de direitos humanos e que não tinham conhecimento da situação.
Os trabalhadores foram resgatados na quarta-feira (22) e relataram ter sido enganados pela promessa de emprego temporário, salário de R$ 4.000, alojamento e refeições pagas.
Segundo o Ministério Público do Trabalho, representantes legais das empresas investigadas apresentaram nesta quinta documentação comprovando o pagamento das verbas rescisórias dos trabalhadores resgatados, a maioria da Bahia, para onde voltaram. Os valores foram determinados em um termo de ajustamento de conduta emergencial.
A ApexBrasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) decidiu suspender a participação das vinícolas em feiras, missões comerciais e eventos promocionais até que as investigações que apuram trabalho escravo sejam concluídas.
O vereador Sandro Fantinel (sem partido), que em discurso na Câmara de Caxias do Sul (RS) aconselhou empresários e produtores rurais gaúchos a contratarem “funcionários limpos”, “não aquela gente lá de cima” em referência a baianos, agora é alvo de um processo de cassação por quebra de decoro parlamentar. A decisão, unânime, foi tomada pelo Legislativo nesta quinta.
“Depois de um turbilhão nacional, afundando o nome de uma pessoa que nunca matou ninguém, e simplesmente proferiu algumas palavras indevidas e pediu desculpas, meus colegas vereadores não tinham como não aprovar”, reagiu Fantinel.
Em vídeo divulgado nas redes sociais, o vereador pediu desculpa e afirmou ter tido um lapso mental ao proferir palavras que não representam o que pensa e sente. “Registro que tenho muito apreço ao povo baiano e a todos do Norte e Nordeste do país”, disse. “Somos todos iguais e estou profundamente arrependido”. Confira a carta.
Carta aberta da Vinícola Aurora à sociedade brasileira
No início do século passado, algumas famílias italianas cruzaram o Atlântico à procura de dias melhores. Nas malas, poucas peças de roupa, uma ou outra foto desbotada, muita coragem e um sonho: refazer a vida em um país estranho. A Vinícola Aurora nasceu desse sonho. Desse sonho e de muito trabalho.
O trabalho que sempre correu nas veias de nossos fundadores logo se misturou a esta terra, espalhou-se por entre os parreirais, nutriu cada planta com um inegociável senso de respeito pelas mãos que a semearam, que a colheram, que a ajudaram a ser da uva, o vinho, e a ganhar o mundo, reconhecimentos e, mais importante, ganhar um lugar à mesa e no coração dos brasileiros.
Os recentes acontecimentos envolvendo nossa relação com a empresa Fênix nos envergonham profundamente. Envergonham e enfurecem. Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seríamos. O trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora isso que fizemos.
Primeiramente, gostaríamos de apresentar nossas mais sinceras desculpas aos trabalhadores vitimados pela situação. Ninguém mais do que eles trazem, nos ombros curados pelo Sol, o peso de uma prática intolerável, ontem, hoje e sempre. A testa daqueles que fazem o Brasil acontecer, todos os dias, às custas do seu suor honesto, deveria estar sempre erguida, orgulhosa, e nunca subjugada pela ganância de uns poucos. Repudiamos isso com todas as nossas forças.
Em seguida, sentimo-nos obrigados a estender essas desculpas ao povo brasileiro como um todo, não apenas como discurso, mas como prática. Já cometemos erros, mas temos o compromisso de não repeti-los. Como empresa, garantimos que a atenção a um tema que nos é tão relevante será redobrada, práticas serão revistas, e todas as garantias para que um episódio indesculpável como esse não venha a se repetir serão tomadas. Temos um longo caminho pela frente, mas todo longo caminho começa com um primeiro passo, e ele é dado agora.
Desde já estamos trabalhando em um programa robusto que deve implementar mudanças substanciais nas dinâmicas da Vinícola Aurora. Essas mudanças devem qualificar não apenas a nossa relação com todos os parceiros, na busca de obtermos controle sobre os processos como um todo, mas também nas práticas e políticas internas da empresa e quanto ao nosso papel enquanto agente econômico, social e cultural de destaque em nossa região e a responsabilidade que advém disso.
Acreditamos nos valores que queremos reafirmar para nos tornarmos dignos da confiança do Brasil mais uma vez e espalhar o seu nome aos quatro cantos do mundo, em cores vivas e pujantes e não em notas cinzas como a que atravessamos neste momento. Esperamos sair do outro lado como uma empresa melhor. Estamos aqui, com a mente e o coração abertos, a começar tudo de novo, se for preciso, como fizeram nossos antepassados ao aqui desembarcarem. Apenas, ao contrário deles, que eram pura incerteza sobre uma terra estranha, fazemos isso com a convicção de ser este um país maravilhoso que merece o melhor de nós.
Trabalho não nos assusta. Deveria ser sempre uma fonte de alegria e realização. E a Vinícola Aurora não medirá esforços para colaborar com a construção de um mundo em que o respeito, o orgulho e a realização façam parte da vida de cada trabalhador.
Sinceramente,
Cooperativa Vinícola Aurora