Por Floriano Lins, de Parintins, especial para o ATUAL
PARINTINS (AM) – As primeiras análises de uma urna funerária indígena produzida em cerâmica encontrada na Amazônia quando agricultores realizavam a escavação para um sumidouro para águas servidas apontam para um achado com cerca de mil anos. O material arqueológico foi encontrado no quintal da residência da família da senhora Saúde Ferreira, na comunidade Santa Rita da Valéria, a uma hora (de voadeira) da sede do município de Parintins (a 367 quilômetros de Manaus).
A estimativa é de integrantes do Grupo de Pesquisas em Educação, Patrimônio, Arqueometria e Ambiente na Amazônia – GEPIA, do Centro de Estudos Superiores da Universidade do Estado Amazonas em Parintins – CESP-UEA. O Grupo esteve na localidade sob a orientação da professora de História, Clarice Bianchezzi, doutoranda em antropologia/arqueologia na UFPA (Universidade Federal do Pará) e vice-coordenadora do GEPIA.
O achado aconteceu quarta-feira, 1°, e na quinta-feira, 2, os comunitários buscaram o apoio dos pesquisadores para receber orientações. “Estive em Santa Rita da Valéria no último sábado, com uma equipe de alunos que faz pesquisa aqui no CESP-UEA de Parintins. A gente foi a pedido dos moradores para ver e orientar o que podia se fazer. Não somos arqueólogos, somos professores e alunos de história que fazem pesquisa sobre arqueologia na Amazônia e ai, com orientações dos arqueólogos com os quais eu tenho contato, a gente tentou organizar o material de forma a evitar a fragmentação pra que pudéssemos, em tempo hábil, mobilizar uma equipe de pesquisadores que possam fazer o levantamento necessário”, disse Clarice Bianchezzi.
Santa Rita da Valéria está localizada no ponto mais alto da Serra de Parintins, com altitude de cerca de 152 metros, na divisa com o estado do Pará. Os achados arqueológicos sempre foram comuns na região, que abriga inúmeros sítios arqueológicos indígenas reconhecidos pelo Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A beleza natural se mistura aos achados arqueológicos, explorados como ponto de parada de navios transatlânticos nas temporadas de cruzeiros pela Amazônia.
Mil anos
Clarice Bianchezzi destaca que “o material riquíssimo contém ossos intactos, o que nos dá condições de fazer a datação do enterramento desse indivíduo que está dentro dessa urna funerária. O objeto não é muito grande, é até pequeno pelos padrões que a gente tem conhecido em outras regiões da Amazônia. Não vou dizer que o caso seja inédito, porque a gente já teve outros locais com urnas com ossos intactos. A profundidade que este objeto estava demonstra que ele é muito antigo, muito antigo mesmo, beirando o ano mil da nossa era, mas essa data será definida a partir das pesquisas”.
Para ela, trata-se de um material enterrado “antes do contato com os europeus, antes da chegada dos portugueses na Amazônia, é um período que antecede tudo que até então, vamos dizer assim, a agente estudou nos livros didáticos”.
Bianchezzi ressalta a forma como os moradores guardaram o material, “compreendendo a importância do achado que pode trazer muitas informações sobre a ocupação da região de Parintins, do Amazonas do Brasil e da América do Sul. O achado foi quarta-feira e os moradores nos procuraram na quinta, pedindo apoio, porque não sabiam o que fazer com o material que é um material arqueológico histórico”.
De acordo com ela, a destinação do material ainda não está definida. “Temos uma parceria com o Museu Amazônico, já acionamos um arqueólogo do Museu Amazônico e ele, neste momento, está dialogando com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Importante salientar que tudo o que está no subsolo do País pertence ao Estado e, dessa forma, o material arqueológico também. A legislação brasileira sobre material arqueológico diz que toda vez que a gente encontrar um material, precisa informar o órgão”.
“A gente fez o primeiro contato com o material, fez o contato com a equipe de trabalho do Museu Amazônico para fazer os registros legais. Uma vez feito isso, algo rápido, a gente está tentando viabilizar recursos financeiros pra trazer uma equipe para pesquisar o material”, informa a pesquisadora.
Clarice diz que a intenção é não retirar o material do local em que ficou, com os moradores, que o guardaram de bom grado, na própria comunidade, segundo ela. “Por enquanto estamos fazendo um diálogo bastante responsável e não faremos nada sem o consentimento da comunidade, porque entendemos que eles também têm sua parcelas de interesse e de responsabilidade com esse achado. Queremos respeitá-los nos seus conhecimentos e nos seus saberes em ter acolhido esse material no momento que o localizaram”.
A pesquisadora afirma ter vivido a experiência como “bastante emocionante”. “Sou formada em História há um bom tempo e nunca tinha tido um contato com uma situação dessas de um enterramento tão histórico, tão antigo de nossos antepassados indígenas. Confesso que estava bastante nervosa quando estive no local, porque a gente está lidando com um material único e temos uma responsabilidade enorme em não danificar o material, em fazer a coisa adequada. Pra mim é uma experiência que marca a vida toda, como professora e como pesquisadora”.
Novos Olhares
O bolsista de iniciação científica Michel Carvalho Machado, aluno de História e pesquisador do GEPIA, atenta para novos olhares em torno do patrimônio arqueológico existente na região. Segundo ele, “quando começou o trabalho, muitos comunitários se preocupavam muito com a questão ambiental, mas não tinham ideia da importância dos materiais existentes nas dezenas de sítios arqueológicos espalhados pela região”.
Michel, ao lado das acadêmicas e pesquisadoras do GEPIA Daiane Cristina Souza de Souza e Jéssica Guimarães Batalha esteve em Santa Rita da Valéria e diz que em tempos passados, muitas pessoas chegavam a estas comunidades e juntavam peças de valor histórico e levavam pra casa, sem que os comunitários se preocupassem com isso.
“Eles não tinham o conhecimento do que fazer, por isso deixavam levar, mas hoje a gente vê não uma resistência, mas uma prática de proteger essas peças, tanto que quando a gente chega nas comunidades muitos questionam: ‘essa peça vai sair daqui ou vai ficar?’. E a gente já mostra pra eles que está ali pra ajudar, pra orientar, fazer a pesquisa e dizer da importância desse material ficar na comunidade”.
Ao anunciar o achado, a comunitária Saúde Ferreira disse, por telefone, da necessidade de uma política pública de orientação e principalmente educação arqueológica para os habitantes da localidade. “Esse achado é muito valioso, mas os nossos governantes precisam nos ajudar mais aqui. Não temos uma estrutura adequada”, reivindicou a interiorana, referindo-se a milhares de peças indígenas já encontradas pelos comunitários. Ali as peças afloram ao solo e muitas vezes são comercializadas com turistas.
Nota a Imprensa
Em nota distribuída na manhã desta segunda-feira, 6, o GEPIA confirma que “o exemplar cerâmico localizado na Comunidade Santa Rita, na região da Valéria trata-se de uma urna funerária feita de cerâmica onde eram depositados para sepultamento dos entes falecidos de antepassados indígenas que residiram na região no passado distante (próximo ao ano 1000 da nossa era).
Desta forma, o que foi encontrado é um vasilhame cerâmico capaz de abrigar uma pessoa adulta em posição fetal, contudo conforme observamos o achado, o crânio foi colocado abaixo e as demais partes acima, sendo que hoje observa-se os ossos sobrepostos ao crânio, um dos modos que muitos indígenas no passado sepultavam seus mortos. O material encontrado é patrimônio de elevado valor para estudos sobre a história da ocupação humana da região de Parintins, do Amazonas, do Brasil e da América do Sul.
Segundo os pesquisadores diversos estudos sobre arqueologia e afins são desenvolvidos na região de Parintins, sendo que um desses estudos tem apontado a existência de mais 30 sítios arqueológicos dentro dos limites do município, sem mencionar os já identificados nos municípios vizinhos. O que demonstra a urgência de políticas pública, tanto municipais e estaduais de valorização do patrimônio arqueológico de Parintins para melhor compreensão da História local.
“A urna funerária que virou notícia esta semana demonstra, assim como outros materiais cerâmicos que quase todos os dias são encontrados por moradores, a urgente necessidade de investir em pesquisas científicas e na construção de um local que possa receber, tratar e expor esse rico patrimônio arqueológico presente nos inúmeros sítios, tais como Valéria, Macurany, Parananema, Laje (na comunidade de Santa Maria da Vila Amazônia), Miriti e tantos outros que já foram identificados nestas pesquisas que vem sendo desenvolvidas pelo grupo de pesquisa GEPIA”, diz a nota.
*Floriano Lins é jornalista e editor-chefe do jornal Plantão Popular, de Parintins-AM