De acordo com a matéria intitulada Regiões Norte e Nordeste têm altas taxas de tráfico sexual de crianças, diz a PF, publicada em 28 de março de 2018, pelo jornalista Henderson Martins, no ATUAL, “nos últimos cinco anos, o Brasil é uma fonte, trânsito e destino para o tráfico sexual e o trabalho forçado”. Uma preocupação no emaranhado do tráfico de pessoas é a questão do tráfico de crianças. Este tema tem poucos estudos na Amazônia, região que apresenta um dos maiores índices de ‘desaparecimento’ de crianças no Brasil.
Em entrevista à IHU On-Line, Marcel Hazeu, respeitado pesquisador da ONG Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais da Amazônia (Só Direitos), afirma que “o tráfico e a exploração sexual na região se intensificam porque há poucas oportunidades para a população local”. É incontestável que este elemento pode favorecer o tráfico de crianças na região, mas, gostaria de apontar outro elemento determinante: a fragilidade do controle institucional.
Para embasar esta afirmação, gostaria de trazer para as análises, a minha experiência pessoal. Nos últimos 20 anos tenho estudado tráfico de pessoas na Amazônia, com diversas publicações, acompanhando vários seminários, congressos nacionais, regionais e internacionais sobre o tema e assessorando a Rede Um Grito pela Vida, importante instituição da Igreja Católica integrante da Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Em quase todos os eventos há participação das instituições que lidam com o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, especialmente representantes da PRF (Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal). Esta última, encarregada de combater as mais variadas formas de crimes nas rodovias e estradas (não pavimentadas) federais do Brasil, monitorar e fiscalizar o trânsito de veículos, bens e pessoas.
Neste artigo, gostaria de compartilhar uma experiência pessoal que indica a fragilidade da Polícia Rodoviária Federal no enfrentamento ao tráfico de crianças nas fronteiras da Amazônia. Soma-se à minha experiência pessoal, as narrativas de mais dez estudos de caso que venho realizando no e Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (GEIFRON), vinculado à Universidade Federal de Roraima, coordenado pela professora Doutora Francilene dos Santos Rodrigues.
Com relação à experiência pessoal, esclareço que nos últimos cinco anos morei em várias regiões da Amazônia entre os estados de Rondônia, Amazonas e Roraima. Pois bem, tenho dois sobrinhos, dois meninos com seis e onze anos de idade. Essas duas crianças que moram em Manaus, sempre que possível, vão me visitar.
Viajam de avião, de ônibus ou de carro particular. Às vezes levadas pelos pais, por amigos, ou parentes, sempre com a autorização de viagem nacional para criança que é o documento exigido nos casos em que uma criança viaje para destinos nacionais, desacompanhada de seus pais ou de seus responsáveis legais e sob o cuidado de pessoa maior de 18 (dezoito) anos com a qual não haja parentesco até o terceiro grau.
De acordo com a Lei, no caso de viagem nacional, o ECA (Estatuto da Criança) exige que menores de 12 anos tenham autorização dos pais para viajar desacompanhados ou na companhia de pessoas que não sejam seus parentes até o terceiro grau, como: irmãos, tios e avós. A autorização é dispensável quando a criança estiver na companhia do pai, da mãe ou de ambos, do responsável legal, ou ainda de ascendente ou colateral maior, até o terceiro grau, comprovado documentalmente o parentesco (Art. 83, § 1º, b, 1, da Lei 8.069/90), com a certidão de nascimento (original ou cópia autenticada) da criança.
Para receber a visita de meus sobrinhos ou para viajar com eles, esse cuidado sempre tem sido tomado. Entretanto, o que vem chamando a atenção, nesses anos todos, é que, o documento de autorização, salvo nos casos de viagens aéreas, nunca foi solicitado pelos agentes diretos das empresas de viagens rodoviárias, nem pelos agentes da polícia nas raras revistas que realizam nos postos da PRF, sejam nas divisas de municípios ou nas fronteiras entre países.
Nas férias deste final de ano, as crianças vieram me visitar em Boa Vista, acompanhadas por uma pessoa amiga da família que portava o documento de autorização que não foi solicitado pelo agente da empresa de ônibus na qual embarcaram em Manaus. Viajaram quase 800 quilômetros sem passar por nenhum controle de fiscalização.
De Boa Vista, fomos passear na região da Gran Sabana, pela Rodovia Troncal 10 da Venezuela. Cruzamos a fronteira pela BR 174, passando por postos de fiscalização da PRF saindo do país e, nenhuma revista. Adentramos a Venezuela pela Rodovia Troncal 10, passamos por diversas alcabalas (que são as barreiras de controle do tráfego rodoviário venezuelano) depois da cidade de Santa Elena do Uairén, que é primeira cidade da Venezuela cruzando a fronteira. Neste trajeto de ida e volta passando por quatro municípios do Estado Bolívar, não foi solicitada a autorização para viajar com os menores em nenhum momento.
No caminho de volta à Boa Vista, finalmente os agentes da PRF averiguaram os documentos do carro e da motorista, os itens de segurança (cadeirinha) de acordo com o que estabelece a Lei nº 13.281, de 4 de maio de 2016, mas, em nenhum momento pediu a autorização para viajar com os menores, nem os documentos dos mesmos.
Outra questão importante que deveria despertar a atenção dos agentes federais é o fato dos meninos serem muito diferentes, um branco e outro negro (adotivo), e da minha diferença de idade não ser compatível com a idade convencional para ser a mãe dos mesmos. Mesmo assim, não solicitaram maiores informações sobre o fato de uma mulher de meia idade estar transportando duas crianças menores de 12 anos nas rodovias nacionais e internacionais.
Diante dos diversos casos de desaparecimento de crianças na Amazônia, essa indiferença por parte dos agentes federais com relação à documentação das crianças e a autorização de viagem pode ser considerada uma falha mais grave do que viajar sem os equipamentos de segurança. Entretanto, os agentes da PRF, pelo menos estes pelos quais passei nas últimas viagens, parecem estar preocupados apenas com os itens de segurança. Talvez porque a ausência destes é passível de multas?
Conversando com outras pessoas que viajam com crianças nessa região, constata-se a mesma situação. Em pelo menos dez estudos de caso, as circunstâncias da viagem com menores são as mesmas. Nos raros casos de fiscalização, são averiguados os itens de segurança para a viagem e ignorados os documentos de autorização para viajar com menores.
Num dos estudos de caso, uma amiga da família trazia as crianças de Santa Elena para Boa Vista no banco de trás sem o acento de elevação (exigido para a criança que tinha pouco menos de sete anos) e foi multada sem que o agente federal confirmasse nem a idade da criança no seu documento nem solicitasse a autorização para a motorista que as transportava, consoante ao que estabelece a Lei Federal Nº 8.069/90, art. 83, § 1º, letra “b”, 2.
Em outro estudo de caso, um motorista de caminhão transportou um menino de 8 anos, filho de um casal de amigos de Manaus à Cuiabá, capital do Mato Grosso, pela BR 319 e depois pela BR 364, e conta que passou por diversas fiscalizações realizadas por agentes da PRF que averiguaram os documentos da carga, do caminhão e do motorista. Mas, em nenhum momento pediram os documentos do menino, nem a autorização para viajar em sua companhia.
Diante disso conclui-se que é tão importante averiguar quem transporta as crianças quanto como elas são transportadas. Ou seja, é importante sim garantir a segurança da viagem exigindo os equipamentos determinados por lei. Mas, também é importante averiguar quem as transporta, de onde vêm e para onde estão indo? Quem autorizou a viagem dos menores?
Conclui-se, por fim, que a negligência quanto à estas informações, pode estar facilitando o tráfico de crianças e adolescentes nas fronteiras da Amazônia e dificultando as ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas nessa região extremamente visada pelas rotas internacionais do tráfico.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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