Por Eduardo Moura, da Folhapress
BELO HORIZONTE, MG – O Congresso Nacional decidiu, nesta segunda (27), que, no Brasil, conteúdos veiculados em plataformas como Globoplay e Netflix não devem pagar um imposto que é revertido ao fomento de obras audiovisuais nacionais. O mesmo tributo é devido por conteúdos exibidos em outras mídias, como salas de cinema, televisão e DVDs.
Condecine-título é o nome do tributo que os titulares de obras audiovisuais veiculadas em serviços de streaming não devem pagar. Assim, um filme ou seriado, quando veiculado na TV aberta ou numa sala de cinema, gerará uma cobrança. Quando veiculado numa plataforma de streaming, não.
Esta é uma das modalidades da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, ou Condecine, imposto vital para o fomento do audiovisual brasileiro.
O tema havia sido anteriormente vetado por Jair Bolsonaro (sem partido), veto este que foi derrubado nesta segunda pelos parlamentares.
Vale ressaltar que o setor do streaming paga diversos outros impostos. A discussão feita nesta segunda contemplou apenas uma contribuição específica.
Na Câmara, o veto foi apreciado no mesmo bloco de outros temas, entre eles, a proibição do despejo de famílias em meio à pandemia.
Este ano, a Netflix alcançou a marca de 200 milhões de assinantes no mundo. Entre 2019 e 2020, o Globoplay teve aumento de 112% de faturamento e 80% na base de assinantes da plataforma, segundo o portal Meio&Mensagem.
O dinheiro arrecadado pela Condecine -que tem mais duas modalidades além da Condecine-título- vai para o Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA. Este deve ser gasto em programas de apoio à infraestrutura técnica, produção independente, distribuição, comercialização e exibição de obras nacionais.
A Condecine-título é cobrada sobretudo de distribuidoras, para obras veiculadas em meios como cinemas, TVs e DVDs. Trata-se de um valor fixo pago por título veiculado, independentemente de quantas pessoas irão assistir àquele conteúdo ou de quanto será o faturamento. O valor vai depender de onde a obra passou e se é um longa, curta ou média-metragem.
Além da Condecine-título, há as modalidades remessa e teles -nenhuma dessas duas, porém, recai sobre as plataformas de vídeo sob demanda. A primeira delas, a Condecine-remessa contém uma alíquota de 11% que incide sobre dinheiro remetido ao exterior obtido a partir da exploração de obras audiovisuais no Brasil.
A segunda, a Condecine-teles, recai sobre serviços de telecomunicações em geral, mesmo sobre aquilo que não está diretamente ligado ao mundo do audiovisual -um chip de celular, por exemplo, tem em seu preço uma Condecine embutida.
Mas por que os serviços de streaming têm esse aparente privilégio tributário?
Pessoas do mercado do audiovisual brasileiro ouvidas pela reportagem afirmam que esse modelo de cobrança atual não faz sentido para uma plataforma que, ao contrário de um complexo de salas de cinema ou de um canal de TV, contém centenas e centenas de títulos disponíveis a qualquer momento.
O vídeo sob demanda já está no país há pelo menos uma década, e as plataformas são cada vez mais relevantes tanto para o público quanto para o mercado produtor. Ainda assim, no Brasil, não se decidiu sobre qual a melhor forma de tributar esse novo mercado.
Por enquanto, o que ficou decidido pelo Congresso é que a Condecine-título não cabe. Isso não quer dizer que o conteúdo de streaming ficará para sempre sem pagar alguma das modalidades da Condecine -há quem veja a possibilidade de se criar uma nova modalidade específica para as obras em streaming.
A origem da norma recém-aprovada vem de uma proposição que queria diminuir a taxação de banda larga via antenas de pequeno porte, tecnologia que é usada para fornecimento de internet em áreas rurais. É algo que parecia bem razoável aos olhos de congressistas e dos setores de telecomunicações e do audiovisual.
Mas aí veio uma emenda do deputado Marcelo Ramos, do PL do Amazonas, que não tinha muito a ver com internet na zona rural. Foi com essa emenda que se confirmou que os serviços de streaming não deveriam pagar o tributo Condecine-título.
A Lei da Condecine, de setembro de 2001, estabelece que devem pagar a Condecine-título os conteúdos veiculados em salas de exibição, vídeo doméstico, serviço de radiodifusão de sons e imagens, serviços de comunicação eletrônica de massa por assinatura e “outros mercados”. Ou seja, a lei explicitava a cobrança para obras exibidas em cinemas, VHS e DVD, televisões abertas e fechadas -e deixava um última categoria em aberto, tendo em vista que o mercado do audiovisual muda com rapidez.
Um tempo depois, há cerca de dez anos, Manoel Rangel, então no comando da Ancine, a Agência Nacional do Cinema, publicou três instruções normativas que punham o streaming no mapa da tributação.
As instruções normativas de Rangel tentaram encaixar o streaming sob a rubrica “outros mercados” -foi essa tentativa que foi nocauteada pelo Congresso agora. Mesmo antes disso, porém, as plataformas nunca chegaram a pagar a Condecine-título.
Para Leonardo Edde, produtor de cinema e presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual, o Sicav, a medida provisória pode gerar impactos de longo prazo no fomento de produções nacionais. “O streaming é um mercado que está em crescimento e que substitui vários outros mercados, como home video e a TV paga. É para onde pode se escoar toda a produção local, porque não tem limitação de quantidade de títulos”, diz.
“E aí você começa a ter um canal de distribuição de conteúdo que não reverte nada para a indústria local”, afirma Edde. “Toda política pública é um círculo virtuoso. Ela traz arrecadação e traz fomento -e no futuro tudo vai virar digital. A partir do momento que você quebra uma isonomia de mercado, você abre precedente para as TVs, distribuidoras e cinemas virarem e falarem: ‘Por que eu tenho que pagar?’.”
Para Mauro Garcia, presidente da Brasil Audiovisual Independente, a Bravi, associação que agrupa quase 700 produtoras independentes no país, a não obrigatoriedade do pagamento da Condecine-título por conteúdos de streaming é uma gotinha num oceano que é a discussão sobre tributação do sob demanda. “Infelizmente a gente reduziu uma discussão ampla a apenas um ponto.”
Segundo ele, esse tipo de regulamentação balizada pelo tipo de mídia -um valor para TV, outro para cinema, outro para o streaming- é perecível, já que novas tecnologias para audiovisual surgem a todo o tempo. “A cobrança por porcentagem do faturamento seria a forma mais isonômica. Quem fatura mais paga mais, quem fatura menos paga menos.”
Há ainda quem discorde que streaming e Condecine-título são incompatíveis.
“A Condecine deve incidir sobre plataformas de streaming, primeiro, porque há fundamentação legal. Segundo, porque a diretoria colegiada da Ancine, por meio de ato administrativo, baixou uma resolução que disciplina o recolhimento”, diz Raquel Valadares, integrante da diretoria da API, a Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro.
“Para dar uma dimensão, a Condecine-título que incide sobre apenas um episódio de série equivale somente a R$ 750. Além de ser faturada em real neste momento de câmbio favorável, essa contribuição não varia com o número de visualizações, ou de assinantes. Ela é uma cobrança única que não pesa sobre o faturamento bilionário dessas grandes empresas estrangeiras. Por tudo isso, nós produtores ficamos sem entender esse ‘jabuti’ que atropelou os dispositivos regulatórios existentes, desobrigando essas empresas de contribuir com a indústria nacional”, diz Valadares.
Outros afirmam que se pode encaixar o streaming, sobretudo os estrangeiros, na estrutura atual da Condecine, só que em outra categoria. “O streaming é um paradigma diferente [em relação a TV e cinema], mas isso não quer dizer que o conteúdo estrangeiro que gera receita não deva contribuir com o mercado nacional”, diz Fabio Lima, da agregadora Sofá Digital. Ele aponta para outra modalidade, a Condecine-remessa, para tributação de grandes redes estrangeiras de streaming.