É de praxe a sobrecarga de trabalhos no final do ano. Em meio a relatórios e fechamento das atividades acadêmico-científicas, as reflexões da coluna Amazonas Atual foram ficando de lado. Até que no início dessa semana, a leitora assídua da coluna, Nancy Pereira, liderança da Pastoral dos Migrantes de Porto Velho, capital de Rondônia, fez um apelo: “precisamos dos seus textos para nos ajudar a refletir sobre as migrações na Amazônia”.
O apelo de Nancy veio a calhar porque, de fato, a academia tem um compromisso com a sociedade no sentido de contribuir com elementos para a reflexão. E, nesse caso, é o tema da migração que está em debate. Motivada pela leitora, compartilho uma experiência profunda de pesquisa de campo realizada na última semana juntamente com a equipe do Observatório das Migrações em Rondônia, coordenado pela professora doutora Marília Lima Pimentel Cotinguiba, da Universidade Federal de Rondônia.
A equipe do observatório realizou pesquisas no município de Pacaraima onde observou as ‘trochas’ (caminhos de passagem dos migrantes) em meio à savana que perpassa a fronteira entre o Brasil e a Venezuela, visitou os abrigos e entrevistou os migrantes nas ruas do município transfronteiriço. Também se deslocou para o município de Bonfim, atravessou o rio Tacutu, pela ponte internacional que liga a cidade brasileira, no estado de Roraima, à cidade guianense de Lethem. Em ambas as fronteiras as pesquisadoras e pesquisadores encontraram cenários tensos e intensos das migrações internas e internacionais nessa região tranfronteiriça.
No sábado a equipe foi conhecer a comunidade Warao Janoko localizada a 35 km de Boa Vista, no município do Cantá. Acompanhada pela mestranda Marielys Briceño do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras, que coordena projetos de educação popular da Fundação Fé e Alegria em Roraima, a equipe adentrou à comunidade.
Warao Janoko é formada por 12 famílias do Povo Indígena Warao e 2 núcleos familiares do Povo Kariña. Ao todo, quase 100 pessoas compartilham um pequeno território adquirido com apoio de instituições como a fundação Fé e Alegria, o Conselho Indigenista Missionário, o Conselho Indígena de Roraima, o Serviço Pastoral dos Migrantes, a Cáritas, dentre outras instituições nacionais e internacionais que atuam junto aos migrantes.
O território é pequeno para tanta gente, mas, nem se compara ao empilhamento de pessoas nos abrigos para migrantes. Aliás, esse é um tema recorrente dos moradores e moradoras que buscaram nessa experiência uma alternativa aos abrigos e um feito extraordinário nas iniciativas de políticas públicas migratórias. Absolutamente todos e todas se dizem contentes pela conquista e por romper com a estratégia do abrigamento que para eles(elas) representa uma política de confinamento.
O mais novo território indígena formado por grupos deslocados da região do Alto Orinoco na Venezuela é um modelo de sustentabilidade e protagonismo dos migrantes. Em poucos meses as casas, ainda na forma de barracas, estão rodeadas de plantações de hortaliças, macaxeira, bananas de diversas variedades, flores e pequenas fruteiras que logo estarão alimentando toda a comunidade.
No meio da tarde de sábado, a equipe surpreendeu os moradores em plena atividade de trabalho. Logo na primeira casa da comunidade, um grupo de mulheres finalizava a tessitura de cestarias de palha de buriti, matéria prima do artesanato warao. Os cestos são verdadeiras obras de arte produzidas pelas mãos ágeis das mulheres mais jovens que aprenderam das mães e avós as fórmulas matemáticas dos contornos e pontilhados na palha entrelaçada. Alguns homens observam e colaboram com o trabalho que é eminentemente feminino. Cada peça carrega as marcas das mãos e da história do povo Warao.
Logo na sequência das casas, uma família do povo Kariña recebia a visita de uma liderança do povo Wapichana que vive nas imediações da comunidade, para compartilhar técnicas do preparo de casabe. Trata-se de uma variedade de beiju de mandioca parecido com a tapioca, só que muito mais crocante, assado em forno grande e em formato circular o beiju mede mais ou menos 50 cm de diâmetro. A destreza com que a anfitriã maneja a massa no forno impressiona os(as) visitantes atentos(as) às explicações dos métodos de preparação e conservação do casabe que é alimentação básica de todas as famílias da comunidade.
Na última casa visitada, o casal prepara o tear para tecer novas redes de cordão sintético que substitui as fibras vegetais indisponíveis nessa região. Algumas redes estão prontas, penduradas nas laterais da barraca. A combinação das cores e da tessitura impressiona não somente pela beleza, mas, especialmente pela qualidade do trabalho manual que exige grande conhecimento da técnica ancestral.
Numa das casas a pedagoga Diolimar, liderança warao formada na Venezuela, reúne as crianças para aula de reforço escolar. Com pouco material didático, ao redor de uma mesa improvisada, as crianças refazem as tarefas escolares em três línguas simultaneamente: warao, espanhol e português. As crianças gostam da aula e refazem as tarefas de forma alegre e descontraída. A oralidade prevalece durante os trabalhos em respeito à ancestralidade na formação do conhecimento indígena.
As crianças estão matriculadas na escola municipal do Cantá. Precisam caminhar cerca de dois km para frequentar as aulas. Algumas reclamam que não se sentem acolhidas na escola dos “criollos” que é como se referem aos não-indígenas. Uma dificuldade que as crianças enfrentam é a diferença de idade. Nos processos migratórios, muitas não conseguiram acompanhar os ciclos referentes à sua idade escolar. Se sentem deslocadas. A pedagoga pontua que não basta garantir a matrícula. É preciso desenvolver uma escola intercultural que acolha as crianças num processo de inclusão. Acena que as políticas públicas para os migrantes passam, necessariamente pela educação inclusiva que envolve a escola como um todo.
Marielys reúne um grupo para pensar alternativas de sustentabilidade enquanto a colheita não chega. Alguns sugerem a agricultura agroecológica voltada para a comercialização do excedente da alimentação da comunidade. Parecem animados com essa proposta. Outros falam de acesso a material para o artesanato e sua comercialização. A produção comercial do casabe também é considerada. São elementos importantes que garantirão a permanência das famílias no território sem precisar, necessariamente se deslocar para buscar trabalho fora da comunidade.
Observou-se que na comunidade Warao Janoko tudo é debatido e decidido de forma coletiva e orientado por uma associação comunitária que dá sustentação para as decisões e encaminhamentos. Uma verdadeira lição de cidadania e participação popular em processos democráticos que garantem a manutenção das orientações culturais e da ancestralidade dos povos indígenas.
Ao terminar a visita de campo, a equipe do observatório e do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras (GEIFRON/UFRR) concluiu que enquanto as instituições nacionais e internacionais permanecem no campo das emergências, os migrantes e deslocados vão fazendo outros caminhos que visam romper com o emergencial e criar políticas públicas de acolhimento e inclusão dos migrantes à sociedade.
As análises e relatórios ainda não foram concluídos. Tão logo isso ocorra, compartilharemos novas reflexões sobre o tema de grande relevância na Amazônia. Gratidão à Nancy Pereira pela reclamação do artigo e pela sugestão de pauta. As propostas dos leitores e leitoras são sempre muito bem-vindas.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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