EDITORIAL
MANAUS – Houve um tempo em que misturar política e religião era considerado um pecado. Nos idos dos anos de 1980, uma ala da Igreja Católica ousou inserir nas pregações religiosas um viés político, com a intenção de abrir os olhos dos fiéis para a realidade que estava ali à frente de olhos arregalados, mas que muitos passavam ao largo sem se importar.
A pregação era uma tentativa de despertar a sociedade para um novo olhar social, visava combater o conformismo e inserir a todos numa luta por mudança. Era necessário mudar o estado de coisas que produziam fome, miséria e exclusão. E, segundo o discurso à época, a política era o caminho mais viável para se atingir aqueles objetivos.
Havia, no entanto, uma ética no discurso. A cúpula da Igreja Católica no Brasil orientava que ao fazer aquele tipo de pregação os pregadores evitassem a política partidária, a defesa de candidatos. A orientação deveria ser no sentido de alertar o eleitorado para uma escolha acertada, para que votasse em candidatos que defendiam as mesas causas que a igreja.
Há 40 anos, outras igrejas estavam distantes da política. Condenavam qualquer tentativa de inserção do discurso social nos púlpitos. O discurso religioso era voltado à salvação da alma ou do espírito. A felicidade,diziam, estava reservada àqueles que aceitassem a vontade de Deus, mas a desfrutaria na vida eterna.
Ao longo dos últimos 40 anos, no entanto, essa orientação foi se modificando, e as igrejas aos poucos foram se aproximando da política até leva-la para dentro dos templos. Não com o mesmo objetivo daquela ala da Igreja Católica dos anos de 1980, mas com uma visão de poder.
Grande parte das igrejas evangélicas passaram a desejar ter representantes na política para defender seus interesses. Pastores se tornaram candidatos, se elegeram e se multiplicaram nos parlamentos. Para conseguir seus objetivos, vale tudo, até pisotear a ética religiosa.
Agora, as igrejas apoiam candidatos, levam-no para dentro dos templos, organizam eventos grandiosos para fazer proselitismo político. Os candidatos, por sua vez, estão cada vez mais interessados nesse público, os fiéis, que se tornaram presas fáceis do discurso político, por nutrir confiança na palavra dos líderes religiosos.
O problema é que se chegou a um ponto em que os valores cristãos ou os valores da religião, seja ela qual for, a doutrina, perderam importância. Como numa guerra, a primeira coisa que a mistura política/religião tem feito é matar a verdade, o fundamento de toda instituição regiliosa.
Assistimos nesses primeiros dias da campanha eleitoral o discurso político dos candidatos incorporando as maiores mentiras para produzir medo no eleitor. As palavra demônio, diabo, satanás são usadas exaustivamente contra adversários políticos.
Outra mentira deslavada que tem sido usada tanto por políticos quanto por líderes religiosos é o “risco de perseguição às igrejas”, em caso de vitória da esquerda, como eles tem denominado qualquer candidato de oposição ao presidente Jair Bolsonaro (PL).
Alguns chegam ao ponto de dizer que Bolsonaro é um enviado de Deus, enquanto os outros são representantes do demônio. Logo Bolsonaro, que pisoteia todos os ensinamentos cristãos de bom convívio social.
Nesta terça-feira (16), primeiro dia da campanha eleitoral, os principais candidatos a presidente da República recorreram à religião para atacar um ao outro.
Bolsonaro disse: “Vamos falar de política hoje, sim, para que amanhã ninguém nos proíba de acreditar em Deus”. Bolsonaro sabe que está mentindo. Nunca houve mais liberdade religiosa no Brasil de que nos governos de Lula e Dilma Rousseff.
Lula embarcou no mesmo discurso de Bolsonaro e disparou: “Ele é um fariseu e está tentando manipular a boa-fé de homens e mulheres evangélicos que vão à igreja tratar da sua fé, da sua espiritualidade. Eles ficam tentando contar mentira o tempo inteiro. Mentiras sobre o Lula, sobre a mulher do Lula, sobre vocês, sobre índios e quilombolas.”
Lula também disse: “Se tem alguém possuído pelo demônio é esse Bolsonaro.”
O Brasil vive tempos sombrios de terrorismo religioso. Aliados de Bolsonaro divulgaram uma imagem de um encontro de Lula com lideranças da Umbanda e do Candomblé, duas religiões de matriz africana. A legenda dizia que Lula “vendeu a alma para vencer a eleição”.
Essa imagem foi compartilhada pela primeira-dama do Brasil, Michelle Bolsonaro, evangélica que assumiu o discurso com viés religioso da campanha de Bolsonaro, e já disse até que o Palácio do Planalto estava “consagrado a denônios” antes da chegada do marido.
A associação das religiões de matriz africana com coisa ruim, como fez a primeira-dama, é um típico caso de intolerância religiosa. A Lei 9.459, de 13 de maio de 1997, tipifica no seu artigo 20 a discriminação ou preconceito religioso como crime, com pena de reclusão de um a três anos e multa.
Mas nesses tempos de campanha eleitoral, está valendo tudo. Até as religiões, que deveriam zelar pela verdade e pregar a paz entre homens e mulheres, passaram a chafurdar nas mentiras da política.
Tempos sombrios.