
Foi lançado no dia de ontem o relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre a migração venezuelana em Roraima. Intitulado ‘imigração Venezuela-Roraima: evolução, impactos e perspectivas’, o relatório apresenta dados atualizados sobre aspectos econômicos, fechamento da fronteira e os deslocamentos dos povos indígenas nesta região transfronteiriça.
O Ipea é uma fundação pública vinculada ao Ministério da Economia que fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais, possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros, e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus técnicos.
Neste relatório apresenta “os impactos da migração venezuelana na fronteira brasileira. Ele irá se deter, mais especificamente, sobre o estado de Roraima, principal porta de entrada dos migrantes em território nacional. O trabalho tem como base o acompanhamento realizado pelos pesquisadores da pesquisa Fronteiras do Brasil, da Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais (Dirur), do Ipea”.
São dados atualizados desde 2015 com base em estudos realizados por pesquisadores(as) de diversas instituições no intuito de acompanhar os desdobramentos das migrações venezuelanas e dos deslocamentos dos povos indígenas, especialmente o Povo Warao, no Estado de Roraima, ora como destino, ora como trânsito e passagem para outras regiões do Brasil e para outros países.
De acordo com o relatório a base metodológica do estudo foi “a análise descritiva de bases de dados governamentais e internacionais, fontes jornalísticas, artigos acadêmicos e anotações de campo, com vistas à produção de um panorama abrangente da migração para o estado de Roraima”. Além disso, uma pesquisa de campo com moradores de Boa Vista forneceu elementos para as análises da atual situação migratória nesta região tendo como enfoque apenas a mobilidade venezuelana.
O relatório reconhece e alerta que o fechamento da fronteira acarreta prejuízos econômicos e coloca em risco a vida dos migrantes que passam a utilizar as “trochas”, trilhas por entre a savana e o lavrado, controladas por milícias especializadas no contrabando de migrantes. “O impedimento da passagem entre os dois países não reduziu a imigração para o Brasil, isso porque os imigrantes cruzaram a fronteira por pontos clandestinos de passagem, em trilhas abertas por dentro da vegetação e das pastagens. Em termos de migração, o que mudou com o fechamento da fronteira foi o fato de que os venezuelanos que desejavam sair do país necessitaram se submeter a riscos maiores para chegar ao Brasil. Aumentou ainda o movimento nas rotas clandestinas, com o bloqueio de guardas na BR-174, que liga o Brasil à Venezuela”.
Num contexto internacional em que 7% da população mundial se encontra em situação de deslocamento, “a crise venezuelana, […], não poderia ser abordada de forma isolada por cada um dos governos de países receptores de imigrantes venezuelanos”, alerta o relatório em sua página 08. E afirma ainda que intensa circulação de migrantes “venezuelanos na região teve como consequência, desde uma perspectiva securitária da migração, tratamento como assunto de natureza interméstica. Ou seja, aqueles conflitos resultantes da conjunção de instabilidades interestatais e domésticas que possuem transbordamento político para outros países da região. São exemplos: surgimento de novas ameaças relacionadas à dispersão do crime organizado, redes de tráfico de pessoas e transporte ilegal de armamento”.
Nesta perspectiva, o relatório alerta para os limites que o Estado brasileiro tem apresentado ao lidar com a migração venezuelana como um problema e não como uma oportunidade de criação de políticas públicas migratórias capazes de incluir estados e municípios com programas permanentes de atenção à migração que, historicamente, caracteriza esta região transfronteiriça. Longe de ser um referencial no trato de questões interculturais, interétnicas e interlinguísticas por causa da conjuntura transfronteiriça, o Estado tem se fechado às possibilidades de ampliação das relações culturais transfronteiriças com Venezuela e a Guiana Inglesa para além das frágeis relações comerciais que permanecem reféns do “tensionamento nas relações políticas entre os países na faixa de fronteira terrestre com o Brasil”.
O relatório na sua íntegra está disponível para Download em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=37355&Itemid=432. Dentre os pontos tratados neste artigo, há outras questões importantes para se compreender e aprofundar a situação da migração em Roraima, com destaque para as recomendações na forma de “conclusões e sugestões” apresentadas na parte final do relatório. Dentre elas, destacamos:
- a história da imigração venezuelana é um fenômeno que remonta à década de 1980, por motivos econômicos, seguido por saída de trabalhadores qualificados, nos anos 1990, e recentemente por deslocados forçados, fugindo de grave crise de governança;
- o fortalecimento da relação bilateral entre os países ocorreu de forma gradual ao longo dos anos 1990, mediante a construção de infraestrutura viária e comercial. A partir dos anos 2000, esse relacionamento se intensificou, porém teve início período de forte instabilidade política, social e econômica, que resultou em intenso movimento de saída de venezuelanos, principalmente por terra, para Brasil e Colômbia;
- entre os anos de 2015 e 2016, tiveram palco as primeiras ações de acolhimento, que ocorreram no âmbito da sociedade civil organizada, por meio de universidades, instituições religiosas e voluntariado. O ano de 2017 é marcado pela chegada das organizações internacionais e da maior atuação do poder público;
- o trabalho do Acnur é amplo e demanda uma complexa rede de parceiros e colaboradores, sendo o principal ponto de apoio aos migrantes que chegam ao estado, somados os esforços de outras agências das Nações Unidas e demais organizações internacionais, como a OIM;
- foi a partir de 2017 que o governo brasileiro reconheceu a situação de vulnerabilidade dos venezuelanos e criou a Operação Acolhida, com o fim de fornecer assistência, moradia e alimento aos migrantes que chegavam ao estado via terrestre, através da fronteira seca entre Santa Elena de Uairén e Pacaraima. Até o momento, 10,2 mil migrantes já foram interiorizados mediante programa de acolhimento. Novos acordos assinados pelo atual presidente preveem recursos para a continuidade da iniciativa, além de incentivo ao acolhimento em outros municípios brasileiros;
- o primeiro fechamento da fronteira venezuelana com o Brasil gerou implicações econômicas importantes no comércio – como o aumento do preço dos aluguéis, da gasolina, de itens básicos de alimentação, do transporte, entre outros – de Pacaraima, e teve reflexos em Boa Vista. O fechamento também interferiu no calendário escolar de alunos brasileiros e venezuelanos que frequentam escolas no Brasil. A cidade de Lethem, na Guiana, se beneficiou do fechamento, uma vez que o fluxo de manauaras e boa-vistenses se dirigiu para lá;
- durante o segundo episódio de fechamento da fronteira, houve queda nas exportações do estado brasileiro para cidades venezuelanas; aumento do comércio informal de café e cigarros; cortes de luz; manutenção do número de migrantes que entraram no país por rotas improvisadas etc. Houve conflitos na fronteira, o que levou o Exército brasileiro a montar barricadas de proteção na faixa de fronteira. Existem diferentes entendimentos na América Latina sobre faixa de fronteira, sendo que somente o Chile fez revisão do conceito nos últimos anos (o tratamento dado a migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio é mais antigo em países como Argentina e Uruguai e mais recente no Brasil e Chile);
- a Lei de Migração surgiu como principal instrumento de regulação e proteção de indivíduos em situação de refúgio. O Acnur emitiu nota afirmando que os venezuelanos devem ser considerados como refugiados, porém o Conare não possui acordo sobre a aplicação ou não do conceito ampliado. Se, por um lado, existem esforços para o reconhecimento e a facilitação da inserção de refugiados, por outro lado, há iniciativas que visam dificultar o acesso de migrantes e refugiados a serviços públicos;
9. a partir de 2018 se multiplicaram os instrumentos normativos de federalização do acolhimento a refugiados e solicitantes de refúgio venezuelanos no país, no entanto o processo de assistência humanitária emergencial já leva mais tempo que a média de permanência desse tipo de ação em outros países. As respostas à emergência humanitária nesse modelo de ação duram perto de dois anos.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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