No início de fevereiro deste ano, no Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, o amazonense de Parintins, Ricardo Gonçalves Castro, brincante do ‘boi caprichoso’, apresentou sua tese de doutoramento com o provocante título ‘Redimindo Masculinidades: Representações e significados de masculinidades e violência na perspectiva de uma teologia pastoral Amazônica’.
Sob orientação do professor doutor, Abimar Oliveira de Moraes, Ricardo Castro recebeu nota máxima com distinção por suas análises acerca da relação entre as masculinidades, violência e religiosidade a partir do contexto Amazônico com uma reflexão ora pautada nos estudos de gênero, ora orientada pela ciência da religião na perspectiva teológica.
A tese representa importantes rupturas de paradigmas nos estudos de gênero e, ao mesmo tempo, nos estudos teológicos. O autor trabalha na perspectiva da desconstrução teórica no sentido de fazer uma análise da violência, de maneira especial a violência praticada por homens contra mulheres observando estudando o comportamento do agressor e compreendendo-o num contexto marcado pela violência.
Os significados das masculinidades encarnadas nas representações elaboradas dentro dos contextos interculturais e históricos da religiosidade amazônica representam uma chave de leitura para reinterpretar o ‘lugar do homem’ nas sociedades amazônicas. ‘Masculinidades’ no plural quer expressar a diversidade de expressões que se constrói tanto na vida das pessoas, como nas expressões culturais e religiosas.
A pesquisa usa da metodologia das teologias contextuais da libertação, que se elaboram a partir de aspectos da realidade cultural-religiosa das quais derivam compreensões críticas das representações sobre os diversos conceitos de masculinidades. As mediações teóricas foram elaboradas a partir das perspectivas teológica interculturais de gênero, feminismo e pós-colonialismo. O problema central apresentado no estudo é a relação entre os vários significados de masculinidades presentes nas representações religiosas, como causa de violência ou possibilidade de redenção.
O autor sustenta a tese de que a “hegemonia de uma masculinidade construída a partir de estruturas coloniais violentas, princípios racionais e teológicos patriarcais, ao ser desconstruída, abre a possibilidade de melhor compreender e enriquecer a vivência humana nos seus modos plurais, no contexto Amazônico”.
Estas reflexões oferecem significados atualizados, para que a vida humana e suas relações, sejam transformadas e manifestem elementos de uma sociedade pautada em relações humanas fraternas, marcadas pelo respeito à diversidade de gênero, classe e etnia num contexto que sofreu importantes rupturas socioculturais a partir dos processos de colonização e dos novos colonialismos.
O autor coloca as “masculinidades” na esfera da história, da cultura e da religião compreendendo um emaranhado de vivências que incluem homens e mulheres em contextos interculturais em constante processo de reformulação. Nessa perspectiva, resgata e elabora uma nova compreensão de cidadania que se torna “florestania” por defender os direitos e deveres daqueles que vivem e dependem diretamente da floresta. Castro afirma que “na floresta tudo está interligado numa grande cadeia de interdependência entre todos os seres que nela habitam”. Esse preceito anula toda e qualquer relação de poder mediada pela violência e rompe definitivamente com os moldes da sociedade patriarcal.
A floresta amplia o conceito de “lugar” e passa a ser entendida como um “espaço maior de convivência e de resistência presente em todas as etapas da história da Amazônia”. Recorda a vida de Chico Mendes e Ajuricaba como modelos de resistência masculina que assumem a defesa de toda a criação nesta região enfrentando os modelos de exploração, destruição e aniquilação de todas as formas de vida na Amazônia.
O autor afirma que a “releitura da vida de Chico Mendes e Ajuricaba indicam caminhos para a vivência redimida das masculinidades na Amazônia”. E pergunta: de que forma esses personagens do contexto Amazônico, na luta de resistência contra a colonização e a neo-colonização devastadora da floresta e de seus povos, podem contribuir para a conscientização de masculinidades redimidas na Amazônia?
O autor interpela a cidadania que se refere a direitos e responsabilidades de quem mora nas cidades e se coloca de costas para a floresta e para toda a dinâmica da vida que se processa nessa realidade. Diante disso, apresenta a “florestania” como caminho que indica outro modo de convivência que se refere aos povos que habitam as florestas e as cidades intermediadas por elas e conclui que “a floresta não nos pertence, nós é que pertencemos a ela”.
Para Castro, esse sentimento de “florestania” nos conduz a “estabelecer não apenas um novo pacto social, mas um novo pacto natural baseado no equilíbrio de nossas ações e relações no ambiente que vivemos”.
Por fim, o autor afirma que as “masculinidades redimidas na Amazônia bebem das fontes cristãs, mas também da cultura milenar dos povos da florestania, tornando-se ecológicas”. Ao mesmo tempo, a tese conclama que “a proteção do meio ambiente deverá constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não poderá ser considerada isoladamente”. E, bebendo da fonte da encíclica Laudato Sì do Papa Francisco (2015), conclui que “a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos e da relação de cada pessoa consigo mesma”.
Dito isso, afirmo que a tese de Ricardo Castro, atualmente diretor do Instituto de Teologia, Pastoral e Ensino Superior da Amazônia, professor da Faculdade Salesiana e pesquisador do Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social: Gênero, Política e Poder, da Universidade Federal do Amazonas, nos oferece elementos para uma maior compreensão da Amazônia e de seus povos. Indico a sua leitura já disponível em formato eletrônico nos periódicos da PUC/Rio e aguardo ansiosa pela sua publicação.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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