A privatização dos serviços de água e esgoto na Amazônia (Amazonas e Tocantins) tem apresentado elementos comuns, dentre eles se destaca a política de priorização dos lucros para a empresa em detrimento das necessidades da população. É importante resgatar resumidamente a história destes dois casos para mostrar esta realidade.
Tocantins foi a única unidade da federação a privatizar sua Companhia Estadual de Água e Esgoto, a Saneatins. Começando em 1998, este processo de privatização foi concluído em 2002, quando a Empresa Sul-Americana de Montagens (Emsa) assumiu o controle da estatal. A partir de 2011, a Saneatins passou para a Odebrecht Ambiental (hoje BRK Ambiental, controlada pela Brookfield), mas antes desta data a insatisfação com o serviço privado já era evidente.
Diante desta insatisfação, em 2010, o governo estadual criou uma autarquia (Agência Tocantinense de Saneamento – ATS) para ser uma alternativa pública para localidades atendidas pela iniciativa privada. Até esse momento, a Saneatins atendia 125 municípios. Ao todo, 77 deles migraram para a ATS, que passou a atender também as áreas rurais do estado, enquanto a empresa privada se manteve na parte urbana de 48 municípios, entre eles os mais populosos, ou seja, onde as receitas são mais robustas.
A reestatização da maioria dos municípios no Tocantins ocorreu porque a iniciativa privada “devolveu” ao estado as municipalidades que não lhe interessavam, mas o que ocorreu primeiro foi a insatisfação da população com os serviços prestados pela empresa privada. Mesmo entre os 48 municípios que continuam até hoje sendo atendidos pela iniciativa privada havia reclamações. Assim, o caso do Tocantins contradiz a alegada eficácia da iniciativa privada, sobretudo nas localidades menores e nas áreas rurais.
Estudo da FGV critica a ineficácia da regulação dos contratos e explica que os municípios de pequeno porte são os mais prejudicados, pois além de menos lucrativos, têm carência de apoio do estado, pouca capacidade técnica e quase nenhuma força política para negociar com o prestador dos serviços de saneamento. Ao frustrar as expectativas de lucro, a empresa privada devolveu para o Estado a gestão dos serviços de grande parte dos municípios do Tocantins, mantendo somente aqueles mais populosos e com maior capacidade de gerar retornos econômicos. Ao assumir os serviços de água e esgoto, a empresa não prioriza as necessidades das populações, mas o lucro. É notório que a manutenção do contrato não é justificada pelos serviços que podem ser prestados às comunidades, mas pela capacidade delas produzir lucros para empresa. O lucro é o que interessa…
A priorização do lucro é percebida também na gestão dos serviços de água e esgoto da cidade de Manaus (Amazonas). A privatização destes serviços, que ocorreu no ano 2000, tem sido objeto de insatisfação, como mostra a evolução histórica dos dados divulgados pelos Procons (estadual e municipal) e os índices da Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa. Igualmente, esta insatisfação foi evidenciada pela Câmara Municipal de Manaus, quando ela recomendou a quebra do contrato de concessão nas CPIs de 2005 e 2012.
É fato que ao longo das últimas duas décadas podemos presenciar a precariedade dos serviços privados na cidade, resultando na instauração do estado de calamidade pública nas zonas periféricas da cidade (2006), assim como na multiplicação de protestos públicos e processos judiciais contra a empresa. Não é por menos que os últimos índices divulgados pelo Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS 2017) indicam que Manaus obtém o 2ª pior desempenho nos serviços de água e esgoto entre as 100 maiores cidades do Brasil, ficando atrás de todas as capitais brasileiras, menos de Porto Velho/RO.
Paralelo a este sentimento de insatisfação, o lucro da empresa cresceu initerruptamente durante o período da concessão privada. A elevação deste lucro pode ser atribuída a diversos fatores: além de não realizar os investimentos necessários para a melhoria dos serviços nas periferias e áreas vulneráveis da cidade, a concessionária tem acesso à empréstimos milionários concedidos pelo Estado mediante condições bastante favoráveis à empresa. Ademais, a empresa tem recebido significativos auxílios do Estado através de grandes investimentos em serviços que ela mesma, recorrendo aos próprios recursos, deveria realizar.
A vertiginosa elevação dos lucros da empresa em Manaus também é atribuída às elevadas tarifas cobradas pelos serviços precariamente realizados. Com efeito, segundo os últimos dados do SNIS, a tarifa praticada em Manaus se mantém como a mais cara da região norte e a 5ª mais elevada do Brasil, perdendo apenas para Canoas (RS), Gravataí (RS), Santa Maria (RS) e Maceió (AL). De acordo o SNIS, a tarifa de água, associada a uma injustificada tarifa de esgoto (100% do valor da água consumida), proporcionou para a empresa uma arrecadação de R$ 1.676,74 bilhão nos últimos 5 anos enquanto o investimento realizado foi somente de R$ 311,44 milhões ao longo do mesmo período (Instituto TrataBrasil). Estas cifras colocam os serviços de água e esgoto de Manaus entre os mais lucrativos do país. Os sócios investidores da Aegea Saneamento (Fundo Soberano de Cingapura e Banco Mundial) agradecem profundamente, mas as populações das periferias manauenses penam duramente com a falta de água e de tratamento de esgoto.
Os dois casos amazônicos de privatização do saneamento demonstram que a busca do lucro possui precedência absoluta em detrimento dos serviços a serem realizados à população, principalmente nas áreas mais necessitadas da cidade. Os serviços essenciais das áreas mais pobres, não despertando o interesse das empresas privadas, acabam ficando sob a responsabilidade do próprio Estado, necessitando, portanto, que as empresas estatais sejam fortalecidas e potencializadas. O que se observa, no entanto, é que estas empresas públicas estão passando por uma grave crise e sofrendo um processo de desmonte, abrindo espaço para uma onda privatizadora do saneamento básico.
Estes dois casos nos permitem dizer que esta onda privatizadora acirrará o abandono das áreas mais pobres, tornando mais difícil a vida de milhares de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade econômica e social. Na medida em que recai sobre o Estado a obrigação de expandir a cidadania até os lugares mais difíceis, levando serviços e dignidade, é um equivoco que a administração pública entregue à iniciativa privada as empresas mais promissoras, permanecendo com aquelas mais debilitadas. Ao contrário, os sensos de justiça e responsabilidade públicas orientam que as estatais mais fortes sejam potencializadas e sirvam de braços do Estado para que este consiga alcançar os mais diversos rincões do Brasil, lugares que não interessam à iniciativa privada por não corresponderem à sua obsessão pelo lucro.
São Leopoldo, 15 de agosto de 2019
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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