Por Flávia Mantovani, da Folhapress
SÃO PAULO – Um caso envolvendo uma refugiada presa em uma das maiores operações policiais do Brasil mobilizou entidades de direitos humanos, pesquisadores e parlamentares, que afirmam que ela é inocente e está detida injustamente há seis meses.
Natural do Togo, na África, a vendedora ambulante Falilatou Estelle Sarouna, 43, foi presa em 15 de dezembro em meio à Operação Anteros, que desvendou um esquema transnacional de golpes pela internet que deixou ao menos 437 vítimas em 24 estados do Brasil, com prejuízo estimado em R$ 24 milhões.
Segundo a Polícia Civil, os criminosos, a maioria deles nigerianos, usavam perfis falsos em redes sociais ou sites de namoro para se relacionar virtualmente com as vítimas. Depois, as extorquiam, ameaçando divulgar fotos íntimas – é o que a polícia chama de estelionato emocional.
A operação mobilizou 820 policiais em sete estados, denunciou 210 pessoas e prendeu 122. Uma delas foi Falilatou, acusada de ser uma das “correntistas” da organização, ou seja, de emprestar sua conta bancária para movimentar os valores ilícitos. Como prova, o Ministério Público apresentou boletins de ocorrência de vítimas do golpe em que a togolesa aparecia como titular de quatro contas e um formulário de abertura de uma dessas contas.
Só que a assinatura do formulário é em letra cursiva, sendo que Fali (como é chamada por amigos) é analfabeta, segundo familiares e advogados. Além disso, a letra é muito diferente da assinatura que consta em seu documento de identidade (que é basicamente um traço), assim como em seu contrato de locação e em outros documentos assinados por ela com reconhecimento em cartório.
Por ser analfabeta, Fali precisava de auxílio para operações bancárias e questões burocráticas, conta seu único parente no Brasil, um padre católico que mora em Salvador. Segundo a defesa da togolesa, ela foi vítima de golpe e teve seus dados utilizados pelos criminosos para abrir a conta em seu nome, sem seu conhecimento.
“Ela sempre precisou de ajuda para fazer documentação, saques no banco, até o valor ela falava e outra pessoa digitava porque ela não sabia nem quais teclas apertar”, diz Mossi Anoumou, 38, irmão dela. “A gente acha que numa dessas situações alguém se aproveitou da vulnerabilidade dela e usou esses documentos para abrir as contas”.
Segundo os advogados, outros dois elementos sinalizariam sua inocência: o primeiro é que ela não levava uma vida compatível com alguém que ganha dinheiro com atividades fraudulentas. Segundo testemunhas, Fali acordava de madrugada para comprar roupas para revender e trabalhava o dia todo em uma calçada no Brás.
“Movimentaram mais de R$ 1 milhão nas contas bancárias em nome dela. Se ela tivesse tido alguma vantagem com isso, por que continuaria trabalhando como vendedora ambulante de sol a sol e sob chuva, morando em uma quitinete com aluguel de R$ 700?”, questiona Vitor Bastos, um dos advogados que representam Falilatou pro bono.
O segundo elemento é que ela própria se apresentou à polícia no dia da operação. Ao chegar em casa e ver que a porta havia sido arrombada, foi a uma delegacia abrir boletim de ocorrência, achando que havia sido furtada. Chegando lá, descobriu que a própria polícia havia entrado em sua casa para cumprir o mandado de prisão. E foi detida ali.
“Qual criminoso se apresentaria numa delegacia espontaneamente?”, diz Bastos. Segundo ele, enquanto há provas de que outros réus que emprestaram suas contas voluntariamente, em troca de dinheiro, eram próximos a criminosos da organização, não há na denúncia nada que vincule Falilatou à quadrilha.
“O que assusta nesse caso é que qualquer um que tivesse seus dados vazados e usados por criminosos para abrir uma conta bancária poderia ser colocado por meses em prisão preventiva, sem a possibilidade de se explicar”, diz Bastos. “Na prática, a gente sabe que a Fali sendo uma mulher negra e migrante fica mais vulnerável a ser presa”.
Bastos tentou diversos recursos para que Falilatou aguarde o julgamento em liberdade, mas foram todos negados.
Para ele, por se tratar de um processo de quase 20 mil páginas e com centenas de acusados, o juiz não analisou cada situação individualmente, concedendo habeas corpus a grupos com base em critérios genéricos – por exemplo, mães de crianças de menos de 12 anos.
Apenas em maio, cinco meses depois das prisões preventivas, o processo foi desmembrado. “O principal problema é a falta de individualização. O caso de Falilatou está no emaranhado de um processo com 210 réus, sendo ela acusada de forma arbitrária e sem provas de crimes como extorsão, lavagem de dinheiro e estelionato”, afirma a advogada Karina Quintanilha, pesquisadora da Unicamp e integrante do Fórum Fronteiras Cruzadas. “O tardio desmembramento do processo sem que ela tenha direito a responder em liberdade é uma violência”.
Para ela, a forma como o caso da togolesa vem sendo tratado “viola o princípio da presunção de inocência e está inviabilizando o direito de defesa”. “Ainda mais considerando que o processo corre em Martinópolis, uma cidade diminuta que nem sequer tem Defensoria Pública”.
Com a falta de Defensoria Pública na cidade e a demora para designar advogados para os réus, muitos ficaram meses sem defesa. Para Quintanilha e outros ativistas, pode haver mais mulheres imigrantes na mesma situação de Falilatou.
Das 210 pessoas acusadas, 140 são mulheres, que vêm de países como Angola, África do Sul, Haiti, Tailândia e Venezuela. Segundo Cátia Kim, advogada e pesquisadora do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), os líderes da organização são homens, e a maioria das mulheres são acusadas de serem correntistas.
“Um ponto de absurdo é que as tipificações penais foram generalizadas. Todo mundo, independente do papel na organização, foi acusado dos mesmos crimes: extorsão, estelionato e lavagem de dinheiro, entre outros. Se na denúncia o Ministério Público dividiu cada um por seu papel na organização, em tese deveria haver uma tipificação adequada a cada um”, diz.
O caso de Falilatou foi tema de uma reunião, em 31 de maio, na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo, presidida pelo vereador Eduardo Suplicy (PT), da qual participaram representantes da USP, do Conselho Municipal de Imigrantes e da Ouvidoria da Polícia do Estado.
Na reunião, o ouvidor da polícia, Elizeu Soares Lopes, disse que há, no caso de Falilatou, “muitas arbitrariedades” e que iria trabalhar “para reverter essa injustiça”.
Após o encontro, Suplicy enviou uma carta ao juiz Alessandro Correia Leite, responsável pelo caso. Segundo o vereador, todas as informações apuradas por sua equipe dão margem para pensar que Falilatou foi presa injustamente.
Uma campanha apoiada por ONGs, grupos acadêmicos e por deputadas como Natália Bonavides, Sâmia Bomfim e Érica Malunguinho tenta dar visibilidade ao caso e arrecadar dinheiro para que o filho de Fali no Togo volte a estudar – ele teve que deixar a escola por não receber mais recursos da mãe.
O juiz decidiu esperar que todos os acusados apresentem suas defesas antes de começar as análises individualizadas. Enquanto isso, Fali aguarda uma decisão de mais um recurso, desta vez pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça). “Cada dia é um dia a mais que a Fali está presa. O relógio está contra nós”, diz Vítor Bastos.
Questionada pela reportagem, a Polícia Civil disse que reuniu, na investigação, “um robusto conjunto probatório, com imagens de câmeras de monitoramento, depoimentos de vítimas e testemunhas, informações telefônicas e bancárias de envolvidos”.
“Não há qualquer indício, até o momento, de que os correntistas presos não tivessem ciência dos crimes cometidos, inclusive parte deles confessou a participação na ação, assim como os respectivos aliciadores”, afirma a nota, acrescentando que todos os presos foram interrogados em português e no seu idioma de origem. Segundo a defesa de Falilatou, ela não confessou nem foi interrogada formalmente.
O Ministério Público diz que todos os envolvidos terão oportunidade de se defender no transcorrer do processo, que todos os pedidos de revogação de prisão preventiva estão sendo analisados “casuisticamente” e que os acusados têm o direito de recorrer à instância superior.
Já o Tribunal de Justiça afirmou que os magistrados “têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento” e que o juiz só vai analisar as provas quando houver o julgamento. “Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.
De família pobre, Falilatou trabalhou desde criança e por isso não pôde estudar. Da etnia mina, ela falava o dialeto local e um pouco de francês. Chegou ao Brasil em 2014, como refugiada, e sustentava o filho e parte da família no Togo com o que recebia como vendedora ambulante.
Depois de sete anos, seu irmão iria trazer o filho dela para junto da mãe no Brasil no último mês de março, mas desistiu após ela ser presa. Enquanto está detida, Fali acumula dívidas com seu aluguel e corre o risco de se contaminar com Covid-19, afirmam seus defensores. “Ela tem graves comorbidades e corre risco de morte”, diz Karina Quintanilha.
Para a advogada, a togolesa está sendo vítima de racismo e xenofobia. “Para alguns grupos sociais, é como se a presunção de inocência não existisse. Imaginar um banqueiro ou um político preso por extorsão e lavagem de dinheiro sem provas contundentes e sem um processo individualizado durante seis meses é inimaginável”.