“Meus heróis/Morreram de overdose/Meus inimigos/Estão no poder/Ideologia!/Eu quero uma prá viver.” A poesia de Cazuza, mesclada de dor e revolta, proclama um desejo visceral por uma ideologia aqui entendida como saída vital para enfrentar o enigma da morte. Esta reflexão vai percorrer a direção oposta, e especular o contraponto: para viver, o melhor é não ter uma ideologia. Cabe inserir um silogismo, e afirmar que: para ter havido uma desilusão, antes deveria ter havido uma ilusão, assim como a ocorrência do descontentamento tem que ser precedida do contentamento. E é, provavelmente, no desmoronar do frágil e sedutor edifício dessa idealização, ou ideologização, que se fez o parto do sofrimento.
No senso comum, temos por ideologia, comumente, a noção de um movimento que, em atos de boa vontade, tenta mudar alguma realidade particular. Ou defender um ponto de vista que a ela se opõe. Porém, o que de fato a caracteriza é a falta de conhecimentos necessários para razoável compreensão dos fenômenos e interesses sociais envolvidos e, por conta disso, frequentemente caímos nas armadilhas fantasiosas da desinformação, da alienação catastrófica, no sentido psiquiátrico, aquela que nos divorcia da realidade. Em outras palavras, cada desastre histórico, foi sistematicamente acompanhado ou precedido de uma grande escorregão filosófico.
A esse falseador conjunto de ideias, crenças e conceitos damos o nome de ideologia. E o gesto constituinte dessas ilusões é necessário para manter as coisas como são e estão. Isto é, analisando a história – particularmente aquela disseminada como verdade a partir dos arquétipos greco-judaico-cristãos – poderemos identificar nos pensamentos mais comuns e influentes, as “verdades” que compactuavam, e até legitimavam, o que era de interesse para a classe dominante.
Embora não se deva anular a brutal importância desses pensadores, constata-se que o ideário de Platão e de Aristóteles foi justificador do escravagismo, do machismo, de explorações, de uma suposta hierarquia entre pessoas; ou até mesmo sobre o pensamento cristão, sobretudo na época da inquisição: autores que de alguma maneira expressam uma diversidade de pensamento eram cassados e suas obras queimadas, e os autores cuja ideologia opressiva servia para justificar a ordem reinante ganhavam status de verdade.
Tal ímpeto normativo das ideologias não se faz maléfico somente quando nega a realidade, colocando outra em seu lugar. Tal normatividade das mentiras corroem a possibilidade dos sujeitos desenvolverem seu espírito crítico por acostuma-los a mentiras confortáveis e reconfortantes – na versão contemporânea do mito da caverna de Platão, as sombras são as ideologias.
Mas o perigo deste modo de apreensão não se faz somente quando as pessoas não entendem a realidade, até porque, não se tem notícia alguma de um sujeito que a tivesse esgotado. Porém a possibilidade da tragédia se faz na normatividade de certos costumes, em detrimento da desautonomia que resta ao sujeito, sobre aquilo em que ele acredita, pensa, ou deseja. Podendo cair no conto alienante de uma suposta ordem natural das relações e das coisas, sem jamais duvidar que tais ordens podem ser estabelecidas.
Constatando que todos nós fomos criados e desenvolvidos em contextos que culturalmente perpetuam mentiras ideiais, é razoável dizer que a grande maioria de nossas convicções, ou pelo menos a matéria prima para nossas reflexões, não passam de inverdades.
Nas palavras do excêntrico filósofo esloveno Slavoj Zizek:” Eu já estou o tempo todo comendo da lata de lixo. Está lata de lixo se chama ideologia. / A força material da ideologia não me deixa ver o que estou comendo de verdade./ Não é só a nossa realidade que nos escraviza. A tragédia da nossa condição – quando estamos dentro da ideologia – é quando pensamos que escapamos dela para os nossos sonhos, é nesse ponto que estas mesmo dentro da ideologia.”