Por Feifiane Ramos, do ATUAL
MANAUS — O Amazonas registrou 59 mortes em decorrência de ações policiais em 2023. Dessas, 25 (42,40%) eram pessoas negras, segundo a Rede de Observatórios da Segurança. O observatório considerou como negros a soma de uma morte de pessoa preta e 24 declaradas pardas. Outras 32 não tiveram a cor da pele declarada. O registro inclui ainda duas mortes de pessoas brancas. Os dados foram divulgados nesta quinta-feira (7). Do total de vítimas, 69,5% tinham entre 12 e 29 anos de idade.
O sociólogo Luiz Antônio Nascimento disse ao ATUAL que os números são uma confirmação de que o Brasil é um país racista. Segundo ele, o país possui “uma polícia racista” que age de forma “racista contra a juventude negra e a juventude periférica”. “Os números são só para confirmar essa certeza”, afirmou.
“Então nós estamos falando de 93% das vítimas da violência policial, das mortes causadas por policiais, são jovens e negros, o que revela uma tarefa política da polícia, atribuída pelas elites e pelo governo, com o objetivo de eliminar as ‘classes perigosas’, que, no caso, são os jovens negros”. “É a mesma polícia, por exemplo, que não faz nenhum esforço para reprimir greve de professores, por exemplo, ou para reprimir luta por moradia, por exemplo”, criticou.
Nascimento observou que, ao analisar o racismo no Brasil, não se percebe manifestações explícitas nas legislações ou nas escolas de formação policial. “Não tem uma linha racista nos documentos, nas escolas de formação, nas emendas dos cursos que tenham a característica racista. Quando você abre as portas dos batalhões para acompanhar o treinamento dos policiais, você não percebe, você não vê as manifestações racistas. Mas, ainda assim, as polícias são racistas”, afirmou.
“Eles juram para vocês de pé junto, juram pela alma da mãe e do pai, que não são racistas. Mas, na prática, no exercício da profissão, no exercício do policiamento, eles são racistas”, acrescenta.
Nascimento também critica a maneira como a polícia evita atuar em bairros considerados nobres. “Você não vai ter, por exemplo, muito raro você ver a polícia atuando em bairros chamados nobres de Manaus. Porque ela considera que ali não há jovens delinquentes, ela considera que ali não há perigo, ela considera que ali não há nenhum risco”, afirmou.
Os números do Amazonas representam redução de 40,4% nas ocorrências de mortes em ações policiais em relação a 2022, além de uma mudança em sua distribuição territorial. A maior parte dos casos ocorreu no interior do estado, enquanto em 2022 a capital concentrou 61,6% dos registros. No ano passado, 54,2% das vítimas estavam nos municípios do interior.
“Chama atenção que tenha ocorrido sem a criação de qualquer política pública específica e justamente no ano em que o secretário de segurança pública foi alvo de investigação, acusado de envolvimento com o tráfico de drogas. É notável também o aumento de policiais acusados de participação no mesmo mercado”, cita o Observatório.
O documento destacou Rio Preto da Eva, município com menos de 1% da população do Amazonas, mas que concentrou 15,3% das mortes. Contrariando a narrativa dominante sobre o Amazonas, o município não está localizado na calha dos grandes rios e, portanto, não faz parte da rota do tráfico de drogas, considera o observatório.
Em 2023, 45,8% das mortes ocorreram em Manaus, enquanto 12 municípios do interior concentraram 54,2% das vítimas. Além disso, 74% das vítimas na capital eram negras. Das mortes registradas, duas ocorreram em jovens de 12 a 17 anos, representando 3,4% do total.
‘Dispositivo do Estado’
O sociólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), Davyd Spencer Ribeiro de Souza, disse que os dados apresentados reforçam a ideia de que o país vive um processo histórico de “acumulação social da violência”, onde a violência estatal, especialmente a letalidade policial, se apresenta como uma das formas mais evidentes dessa dinâmica.
Para o professor, essa violência não é acidental, mas uma ferramenta do Estado e das classes dominantes para proteger as populações não brancas. “Esta violência estatal, recorrentemente e não legítima, se constitui como dispositivo e instrumento do Estado e das classes dominantes para garantir o domínio sobre determinados territórios periféricos e marginalizados”, afirma.
Davyd Spencer também aponta que a repressão policial se concentra em áreas com populações vulneráveis, como jovens e crianças, que ficam expostas à brutalidade policial. Ele critica o modelo de segurança pública que, em vez de transformar esses territórios em espaços de cidadania e paz, os trata como “territórios da guerra”. Esse modelo, segundo ele, “prioriza, como alvo da ação policial, os corpos não brancos e os territórios sujeitos a todo tipo de carência material e de cidadania”.
Em sua análise, Davyd Spencer também discute como a violência policial está intrinsecamente ligada à segregação racial e urbana. Ele afirma que “o território implica também em um recorte racial, em uma experiência de articulação e reprodução do racismo estrutural que se dá por meio da segregação urbana”. Assim, a violência policial tem um viés racial explícito, atingindo de forma desproporcional as populações negras, especialmente em regiões periféricas.
Spencer sugere que a solução passa pela “transformação do paradigma de segurança pública para a segurança cidadã com foco na transformação cidadã dos territórios periféricos das cidades brasileiras”. Para ele, é essencial que o país adote um modelo mais inclusivo e focado na desconstrução do racismo institucional, promovendo a mudança das práticas policiais que perpetuam a violência nas periferias.
Faixa etária
Pessoas de 18 a 24 anos foram 23 mortos, 39% dos casos. De 25 a 29 anos foram 16, ou seja, 27,1%; de 30 a 34 anos, 7 (11,9%); de 35 a 64 anos houve uma morte (1,7%), não informado 10 (16,9%).
O boletim Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão evidencia a norma da letalidade da ação policial. Ao todo, foram 4.025 vítimas. Destas, em 3.169 casos foram disponibilizados os dados de raça e cor, sendo que 2.782 (87,8%) dos mortos eram pessoas negras.
Nesta quinta edição, o Amazonas passa a integrar a Rede de Observatórios da Segurança. Somado aos estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo, totalizam nove representantes monitorados entre as regiões Norte, Nordeste e Sudeste.
Confira o relatório completo e os dados aqui.