
Por Feifiane Ramos, do ATUAL
MANAUS — Para milhares de meninas no Amazonas, o lugar que deveria protegê-las é o mesmo onde seus gritos são silenciados. No estado, 8.128 dos 10.137 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes registrados entre 2020 e 2024 ocorreram dentro da própria casa das vítimas — 80,2% das notificações. Na maioria desses casos, o autor era familiar ou conhecido.
De acordo com Lisiane Thompson Flores, psicóloga clínica da infância e adolescência, especialista em psicoterapia psicanalítica da infância e adolescência, quando a violência sexual é cometida dentro de casa — muitas vezes por pais, padrastos ou tios — os danos emocionais são profundos e difíceis de romper.
“Quando o abuso acontece dentro do ambiente doméstico, os efeitos tendem a ser ainda mais devastadores porque o lar, que deveria ser espaço de segurança, se torna fonte de perigo. A criança/adolescente vive um conflito emocional intenso: amor versus medo/ódio pelo agressor. Há maior dificuldade de denúncia e rompimento do ciclo, muitas vezes por ameaças, chantagens emocionais ou pressão familiar”, afirma.
Lisiane afirma que a violência sexual no ambiente familiar “é, infelizmente, uma realidade muito mais comum do que se imagina”. O que deveria ser um espaço de cuidado e segurança torna-se, em muitos casos, cenário de violação e medo. Para ela, essa violência se sustenta na distorção dos vínculos afetivos e da confiança estabelecida na infância.

“O lar, socialmente idealizado como um espaço seguro e acolhedor, muitas vezes se transforma em um ambiente de silêncio e violência, especialmente quando o agressor ocupa uma posição de autoridade ou afeto, como pai, padrasto, tio, avô ou irmão. Essa proximidade facilita o acesso à criança, o controle sobre sua rotina e, sobretudo, o domínio emocional, que impede a vítima de reconhecer, nomear e denunciar a violência”, relata.
A naturalização da convivência com o agressor e a idealização da família como espaço sagrado dificultam o rompimento do ciclo. Muitas vezes, a violência é velada e sustentada por medo, culpa e pressão familiar. Em vez de acolher a vítima, o núcleo familiar protege sua imagem negando ou minimizando os relatos.
“Mais do que identificar culpados, é fundamental compreender as raízes dessa realidade, questionar os papéis de poder nas relações familiares e construir redes de apoio que garantam proteção e acolhimento”, afirma Lisiane Thompson.
A violência em números
Conforme os dados da FVS-AM (Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas), entre os tipos de violência notificados o estupro de vulnerável — definido legalmente como ato libidinoso contra menores de 14 anos — aparece em 5.781 casos (57%), seguido por assédio sexual (2.317 registros, 22,9%) e estupro (2.257, 22,3%).
Dados da SSP-AM (Secretaria de Segurança Pública do Amazonas) revelam que, só de janeiro a abril deste ano, foram registrados 305 casos de estupro de vulnerável no estado — um aumento de 12,5% em relação ao mesmo período de 2024 quando houve 271 ocorrências.
Na contramão da tendência estadual, a capital amazonense registrou queda: foram 146 casos nos quatro primeiros meses deste ano contra 160 no ano passado, uma redução de 8,8%.
No mesmo período, a Depca (Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente) e o DPI (Departamento de Polícia do Interior) efetuaram 109 prisões por estupro de vulnerável em Manaus e em municípios do interior. Na capital, foram 62 prisões, sendo 34 em flagrante e 28 em cumprimento de mandados judiciais.
Em relação ao local, além da casa da vítima a rua também é um perigo: 441 casos (4,4%) ocorreram em via pública e 265 (2,6%) em escolas.

Quem são os agressores?
Entre os autores, os vínculos mais frequentes foram amigos ou conhecidos (2.473 registros, 24,4%), namorados(as) (1.847 – 18,2%), padrastos (1.155 – 11,4%), pais (662 – 6,5%) e cônjuges (488 – 4,8%). Apenas 1.030 notificações (10,2%) apontaram autores desconhecidos.
Dos 10.137 registros, 9.364 (92,4%) indicaram homens como autores. Em 7.754 casos (86,4%), a violência foi praticada por uma única pessoa. A faixa etária predominante entre os autores é a de adultos entre 25 e 59 anos, com 3.711 ocorrências (36,6%), seguida por jovens de 15 a 19 anos (2.391 casos, 23,6%) e de 20 a 24 anos (1.846 casos, 18,2%).

“Ressalta-se que mulheres também são autoras de violência sexual contra crianças e adolescentes, mas o percentual de homens é significativamente maior, e novamente se percebe que questões de gênero e de relações de poder se manifestam em desigualdades que operam para a violência sexual contra crianças e adolescentes”, cita a FVS.
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Ao ATUAL, a delegada Juliana Tuma, da Depca, que é responsável por apurar crimes contra menores de idade e pessoas em vulnerabilidade, explica que a instituição age no acolhimento da vítima, mas também na identificação dos autores — o que é um trabalho complexo, especialmente quando o agressor é alguém do convívio próximo da vítima, na maioria, um familiar.
“Esses casos são, infelizmente, recorrentes. Na Depca atuamos com escuta especializada e uma investigação sensível, integrada à rede de proteção. Respeitamos todos os ditames legais [normas ou orientações legais], mas damos ênfase especial ao acolhimento da vítima. Mesmo diante do silêncio ou medo, buscamos elementos técnicos — como laudos, testemunhos, exames — que possibilitem criar elementos para responsabilização do autor, agressor, do suspeito. Também garantimos que a vítima esteja em um ambiente seguro e oferecemos apoio psicossocial, porque restabelecer o bem-estar dela é prioridade”, afirma Juliana.

A delegada relata que os principais obstáculos para que a vítima denuncie o estupro por familiares são o medo e fatores emocionais e estruturais que dificultam o rompimento da violência. Ela diz ser importante fortalecer a rede de proteção em delegacias, conselhos tutelares e instituições que atuem nessa área, pois, segundo ela, quando se investe e fortalece essa rede, tende-se a ter uma resposta mais rápida para os casos.
“O maior obstáculo, na minha visão, é o medo. Medo, dependência emocional, financeira e também a vergonha. Isso são barreiras muito frequentes. Além disso, quando o agressor é uma figura de autoridade na família ou alguém próximo — um irmão, um tio, um avô, um padrasto, um pai — a vítima se sente ainda mais em uma situação de coação [imposição por meio de força ou ameaça], sentindo-se coagida. Para fortalecer a rede de proteção, é essencial capacitar profissionais da educação, saúde e assistência social para identificar sinais de abuso, ampliar canais de denúncia e garantir respostas rápidas e acolhedoras por parte das instituições”, explica.
Questionada sobre a frequência com que esses crimes são cometidos por pessoas próximas da vítima, Juliana Tuma cita a dinâmica de poder e manipulação das vítimas. “O agressor se aproveita do vínculo de confiança para manipular e silenciar a vítima. Isso é típico da violência sexual contra crianças e adolescentes: um crime de controle e poder, muitas vezes invisibilizado dentro do próprio lar, onde parece haver uma cortina que impede a percepção e a denúncia. O desafio é romper esse silêncio, reconhecer os sinais e construir uma cultura de proteção onde as crianças e adolescentes sejam ouvidas e levadas a sério”, conclui a delegada.
As vítimas
Quanto às vítimas, a maioria é menina: 9.387 registros (92,6%) envolvem o sexo feminino. A faixa etária com maior incidência é a de 10 a 14 anos, com 5.644 casos (55,7%). No recorte racial, 8.543 vítimas se autodeclararam negras — 8.319 pardas (82,1%) e 224 pretas (2,2%).
A FVS cita que o baixo número de notificações envolvendo meninos indica provável subnotificação, reflexo de tabus e dificuldades maiores para denúncias, evidenciando como as questões de gênero e relações de poder influenciam a ocorrência e o atendimento dessas vítimas.
A violência, muitas vezes, não é um episódio isolado: 5.049 crianças e adolescentes (49,8%) relataram ter sofrido abuso sexual em outras ocasiões. Entre as vítimas de 10 a 14 anos, 2.131 estavam grávidas no momento da notificação (21%). “Isso aponta para a necessidade de estudos e estratégias que descortinem a subnotificação do estupro de vulnerável, muitas vezes invisibilizado pela gravidez na adolescência”, defende a FVS
Feridas emocionais profundas
Segundo Lisiane Thompson Flores, os impactos psicológicos para meninas vítimas de violência sexual no ambiente doméstico são profundos e multifacetados. Os traumas podem desencadear transtornos de ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático, além de afetar gravemente a autoestima, a identidade e a capacidade de confiar em outras pessoas.
“A vítima costuma sentir medo constante, insegurança e tristeza profunda. É muito frequente o desenvolvimento de ansiedade generalizada, crises de pânico e depressão. Além disso, há o reviver mentalmente a situação de abuso, com flashbacks, pesadelos, hipervigilância e evitação de pessoas ou lugares associados ao trauma”, detalha a psicóloga.
No ambiente escolar, esses efeitos se manifestam como queda de rendimento, dificuldades de concentração e isolamento social. Lisiane chama atenção para o fato de que, em casos graves, os danos emocionais podem evoluir para comportamentos autodestrutivos e pensamentos suicidas. “A vítima frequentemente carrega sentimento de culpa e vergonha, principalmente quando o agressor é da família, o que dificulta a denúncia”, afirma.
Ela defende o acolhimento psicológico especializado e suporte multidisciplinar para que a vítima possa se reconstruir emocionalmente e romper o ciclo de violência.
Silêncio e vergonha
Lisiane enfatiza que o silêncio das vítimas não indica consentimento, mas sim um sofrimento profundo atravessado por medo, confusão, vergonha e culpa. “Quando a violência ocorre em ambiente familiar, a vítima pode, ao mesmo tempo, amar e temer o agressor, sentindo-se responsável pela integridade da família e temendo as consequências de uma possível denúncia”.
Segundo ela, a ameaça direta, a manipulação emocional e o receio de não ser acreditada são barreiras que perpetuam o silêncio. “O agressor muitas vezes utiliza estratégias de dominação emocional e convence a vítima de que ninguém acreditará nela. Ou então recorre a ameaças explícitas, o que mantém a criança ou adolescente em estado de medo constante”.
Para lidar com a dor, a vítima pode desenvolver mecanismos psíquicos de defesa como a negação, o esquecimento parcial (amnésia dissociativa) ou a minimização do ocorrido, como forma de preservar alguma sensação de normalidade.
Lisiane explica que a vergonha também tem papel central nesse processo de silenciamento. “Ela pode internalizar a ideia de que há algo de errado com ela, sentindo-se suja, culpada ou defeituosa. Esse sentimento é reforçado pelo tabu social em torno da sexualidade infantil e pelo medo do julgamento alheio”.
Em muitos casos, o silêncio não é apenas imposto pelo agressor, mas também autoimposto como tentativa de evitar a rejeição, a exposição pública ou a desestruturação familiar. Por isso, a psicóloga reforça que é essencial que profissionais da saúde, educação e assistência social estejam atentos a sinais indiretos e acolham as vítimas sem julgamentos e respeitando o tempo de cada uma.
Encaminhamentos
Apesar da gravidade, a maioria dos casos não chega às instituições de proteção. Segundo a FVS, menos da metade das notificações foi encaminhada ao Conselho Tutelar: 4.239 registros (41,8%). A rede de saúde recebeu 4.160 notificações (41,1%) e a assistência social, 2.362 (23,3%). A Depca foi comunicada em apenas 1.775 situações (17,5%).
“Observa-se baixo percentual de encaminhamentos, possivelmente ligado à desarticulação da rede de proteção, desconhecimento ou ausência de fluxos intersetoriais, e/ou falta de domínio sobre o correto preenchimento da Ficha de Notificação”, diz a FVS
A Fundação reforça que o preenchimento adequado dessas fichas é essencial para garantir atenção integral: “A notificação é instrumento de vigilância em saúde e garantia de direitos e acionamento da linha de cuidados, ambos operados pelos encaminhamentos oportunos”.