Como prova da capacidade emancipadora de um pensamento crítico, é possível ver como a política – em seu sentido amplo – adentra à academia para direcionar, ou limitar, determinadas correntes teóricas para manter sob controle ameaças ou instrumentos de exercício do poder.
Exemplos não faltam, e não é preciso ir longe para constar isso. Como se não bastasse a intimidação de várias formas aos intelectuais, e ativistas em geral, antes, durante ou depois da ditadura. Para além dos atuais casos caricatos da Escola Sem Partido, e do falacioso combate à “Ideologia de Gênero” – introduzida nas escolas de todo país por professores supostamente comunistas – há um debate de importância monumental que fora ocultado de toda formação acadêmica no Brasil nas últimas décadas. E a razão disso é política.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, numa das proclamações do início de seu primeiro mandato, manifestou um emblemático bordão que percorreu todo o projeto econômico após a democratização: “O Brasil não é mais um país subdesenvolvido. É um país injusto”.
Tal ideia não só assumia que – com o capitalismo periférico – era possível desenvolver as forças produtivas do país, mas que dessa maneira era capaz de emancipar a nação e diminuir drasticamente a desigualdade social. São colocações que os fatos históricos, da época até hoje, tratam de contrariar duramente. O Brasil não só sofreu um grave processo de desindustrialização, como também aumentou seu nível de dependência de modo a resumir toda sua estrutura econômica neste predicado.
Por toda a academia, FHC ficou conhecido como o criador da Teoria da Dependência, de forma a ter se tornado um paradigma no que se refere as formas contemporâneas de desenvolvimentismo. A Teoria, a priori, parece denunciar a configuração de colonial sob a qual o Brasil faz parte, porém, a final, constata-se que a ordem é aceitar tal dependência e trabalhar com ela como se um dia pudéssemos ser uma espécie de Suíça brasileira – ou pior, ousar dizer que o Brasil é inerentemente dependente, isto é, que jamais poderia se emancipar diante o centro do capital com somente seus próprios recursos.
O pior se dá quando os relatos e os fatos apontam que essa solidificação da teoria de FHC na academia não foi feita da maneira mais ética possível, pelo contrário. Durante a ditadura um dos maiores intelectuais brasileiros sofreram exílio, e então construiu grande trajetória teórica no Chile e no México. Trata-se de Rui Mauro Marini, pensador afinado e revolucionário que teve suas obras destacadas no exterior, com traduções até para o Chinês, mas que no Brasil começou a ser destacado há apenas uma década.
Marini criou a Teoria Marxista da Dependência, e sofreu um boicote acadêmico-político dos tucanos aqui no Brasil: José Serra e FHC, ao passarem pelo México em 1978, se dispuseram a debater com Marini. Este aceitou, desde que pudesse publicar uma tréplica na mesma edição. E assim foi feito, num texto denominado “As Desventuras da Dialética da Dependência”. Contudo, os tucanos desrespeitaram o acordo, e publicaram sua resposta a Marini nos mais importantes veículos do pensamento econômico e social do país – inclusive a CEPAL – sem publicar a tréplica do brasileiro exilado que já não tinha muita acolhida por aqui. E com o detalhe de terem distorcido partes dos argumentos da obra para assim ser mais fácil a refutação.
Com o passar do tempo, confirmaram-se as evidências de que tucanos adotam o costume de colaborar com os interesses de Washington. Isso se consolida nas nuances de dominação ideológica do imperialismo enquanto estratégia de solidificação do império e aniquilamento dos subversivos, em todos os níveis.
A tragédia política maior não é só pelo fato dos liberais dominarem, de certa forma, o pensamento econômico no Brasil. A tragédia política é gigante quando uma esquerda que tentou se aventurar com coligações com as classes dominantes enxerga somente nas teses burguesas da CEPAL os caminhos progressistas.
Se o pensamento crítico não fosse tão ameaçador para o poder dominante, exemplos como esses não ocorreriam com essa frequência. De tal modo que o debate mais central – que é o de crítica à economia política e a política econômica – tem somente uma visão vesga e obtusa sobre dependência circulando pelas reflexões de um Brasil que, de tão colônia, não consegue erguer o pescoço para pensar e agir livremente…
(*) Igor é acadêmico de Filosofia - [email protected]
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