Por Dalvo Cruz*, especial para o ATUAL
Nesta semana houve dois acontecimentos veiculados pela imprensa local do Amazonas. Um, de dimensão nacional, a respeito da aprovação do novo ordenamento regulatório do saneamento básico, previsto na constituição promulgada 1988. O segundo, o anúncio, e tão somente anúncio sobre o asfaltamento de 52 km da BR-319, rodovia esta com 885 km de extensão que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO).
O que chamou a atenção em tais veiculações foi o tom de comemoração (tipo: “agora vai”) nos dois anúncios paradoxais a experiências dos manauaras com a privatização da Cosama em 2000, pois mesmo depois das promessas eufóricas da livre iniciativa, ainda hoje convivem com falta de água potável encanada, com esgotos a céu aberto, com aterro sanitário precário e insuficiente, valendo ressalta que a constituição (cidadã) promulgada em outubro de 1988 havia aprazado 20 anos para o poder público providenciar tais direitos universais a seus cidadãos.
Assim, por experiência, os manauaras certamente não concordam com os tons de comemoração dos afoitos do Estado mínimo em concomitância dual com a livre iniciativa que, somente pra lembrar, nas duas primeiras décadas do século em curso já foi robusta e imperiosamente socorrida pelo tesouro nacional de vários Estados contemporâneos. A crise financeira de 2008-2009 e a em curso fomentada pela covid-19. É o dinheiro público socorrendo a livre iniciativa.
O segundo anúncio diz respeito ao asfaltamento de 52 km da BR-319 tido como a solução para o fim do entrave para o desenvolvimento regional, sobretudo, para a capital amazonense que fica isolada por via terrestre. No entanto, tal rodovia federal está precária para tráfego corrente desde os anos 1980 e nesse período Manaus se tornou a 7ª capital brasileira com maior PIB per capita e o polo industrial de Manaus se avolumou em produção a se constatar em suas transferências tributárias para a União em torno de 70 bilhões em referência ao ano fiscal de 2018, de acordo com fontes oficiais.
Tais eventos, quando relativamente lidos dão uma noção do quanto a mentalidade brasileira do século XIX ainda orienta pensamentos nos dias atuais a exemplo de sobrepor ideias como fomentação a quimeras historicamente fracassadas tal como lembradas em parágrafo acima. Ou seja, o que falta ao Brasil é democracia factual tal como a prevista na constituição tão lembrada nos dias atuais, pois a água encanada, o esgoto tratado e a coleta de lixo não ultrapassam a fronteira do “brasileiro cordial” cunhado pelo professor Sergio Buarque de Holanda nos anos 1920.
Nos dias atuais, o Brasil é o país onde mais se falam sobre democracia, golpe, apoio de militares, funções das forças armadas, dentre outros temas funcionalmente extemporâneos numa conjuntura de pandemia fomentada por uma doença sem medicamento específico e, por conseguinte, sem cura terapêutica a deixar seus pacientes vulneráveis e a mercê de seu próprio sistema imunológico. A covid-19 tem matado gente de estratos sociais vulneráveis econômica e socialmente e deflagra a falta de democracia factual que vai além do voto bienal.
Recentemente, o Chile e a Argentina experimentaram manifestações populares em suas ruas por dias consecutivos e nem por isso se discutiu a função das forças armadas e nem a elas se evocou como clara demonstração de que aquelas sociedades latino-americanas amadureceram com experiências de governos militares e após a retomada do poder por civis sabem cuidar de suas dificuldades sem que a força seja aplicada contra seus próprios cidadãos que lhes pagam soldos. É manifestação de democracia.
Nesse sentido, o governo FHC (1994-2002) adensou as funções institucionais no Estado brasileiro e suas interlocuções com a sociedade civil e assim perdurou até a ruptura contra o governo Dilma (em abril de 2016) comprometendo a edificação política conquistada na morfologia democrática alçando ao cargo máximo do governo um presidente politicamente fraco, mas suficientemente experiente nos entourages do poder, para se valer de um general da reserva no lugar destinado a civil comprometendo vigências adensadas ao longo da História recente desde os movimentos sociais da década de 1980.
Daí, a partir desse corte venal, a bússola do país perdeu o seu imã deixando a população à deriva sob o comando de narrações oportunistas sem respaldo com a ética no sentido aristotélico do bem à coisa pública, ou seja, quando os pretextos são usados sob nuvens de narrativas, a verdade passa a ser detalhe secundário dando argumentos a falácias dos espertos. A democracia foi criada em Atenas sob a batuta do logos que é o discurso dialético em que o contraditório é a condição para a sua evidência distintamente do discurso raso, alheio aos fatos cabendo aqui a hegeliana “Astúcia da Razão” que tira a razão de cena e deixa os destinos humanos por conta das paixões que, não custa lembrar, advém de pathòs do grego que significa doença, dor; portanto, semanticamente, cabe uma alusão ao que Durkheim chama de anomia social tirando as pessoas de sua normalidade histórica na dialética própria da racionalidade própria e quase única da ocidentalidade.
Tais gestos de euforia são compreensíveis numa perspectiva a distância à proporção de sua devida crítica valendo evocar factualmente que a democracia prevista e legalmente homologada em 1988 ainda se encontra no meio do caminho (no sentido de incompleta) a se verificar nos dados oficiais do IBGE de que mais da metade da população deste país não conta com saneamento básico vindo ao encontro da constatação de que 60 milhões de trabalhadores informais foram apresentados ao Estado brasileiro pela covid-19. É a lacuna da democracia que a constituição prever, mas que se queda na fome do formalismo prenhe de brasileiros cordiais à Sergio Buarque de Holanda.
Talvez seja porque a democracia prevista na Carta Magna deva permanecer na situação do desejo lacaniano na figura da rotina de Sísifo num amanhã que nunca chega porque, ao amanhecer já não é mais amanhã, é o ontem hoje numa rotina seca da existência enveredada tal como a agonia humana descrita pela pena do médico diplomata: “Viver é uma coisa perigosa” valendo o aviso de cuidado com as narrativas triviais porque elas são tão somente movidas e orientadas por interesses, até honestos, mas cegos ou, quando muito, anêmicos de eficiência configurando-se incapazes de eficácia.
Os anúncios de 25 de junho, podem ser análogos aos desejos manifestados a cada dia 31 de dezembro de todos os anos nos quais se renovam os desejos impulsionados pela condição sine quo non de querer, da vontade de ser impulsionado pela dor e pelo direito ignorado à dignidade e à honra. Festa em que fogos de artifício são lançados ao horizonte escuro como a demonstrar alegria e cor num ambiente de ausência de luz distante dos direitos de fato a se ouvir no rádio à pilha a musica dos anos 1980 na voz de Paula Toller “Os outros são os outros, e só”.
A democracia deve ser holística e omnilateral. Senão, não é democracia. E pode, até, ser chamada de conversa fiada.
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*Dalvo Cruz é professor.