“Lutar pela água é lutar pela vida, vida de todos os povos, de todos os seres vivos, vida das florestas, vida dos peixes, animais e vida do universo. Não dá para cruzar os braços e ficar na arquibancada para ficar olhando o que vai acontecer”, escreve P. Justino Sarmento Rezende, membro do povo Ʉtapinopona-Tuyuka, missionário da Congregação Salesiana e também é sacerdote desde 1994. Possui Licenciatura em Filosofia, Bacharelado em Teologia, Mestrado em Educação e é Doutorando em Antropologia. Participa da Rede Eclesial Pan-Amazônica.
Iniciando a conversa
Eu estou feliz por esse convite recebido. Agradeço desde o início aos organizadores do Seminário ecumênico água como bem comum: desafios para os povos da América Latina e Caribe. Diretamente, agradeço aos meus irmãos e irmãs da Repam (Rede Eclesial Pan-Amazônica), que esticaram o convite até Manaus, onde eu estava, para contribuir com o Seminário, com o tema: Reflexões teológicas inter-religiosas sobre a água e bens comuns.
Quem sou eu?
Eu sou um indígena do povo Ʉtãpinopona (Ʉtã = Pedra; Pino = Cobra; Pona = Filhos = Filhos da Cobra de Pedra), também esse povo é conhecido como Tuyuka, da região do alto rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira – Amazonas. Eu sou missionário da Congregação Salesiana, sacerdote desde junho/1994.
Provocação do tema: Reflexões teológicas inter-religiosas sobre a água e bens comuns.
Vou partilhar com vocês nesses minutos alguns elementos que fazem parte de nossas vidas indígenas da região do alto rio Negro. O tema da água é falado por nós no dia a dia. Sem dúvida todos os povos falam da água.
Nós povos indígenas como outros povos do universo, também falamos e vivemos da água. Nós Ʉtãpinopona temos uma relação estreita com as Águas. Nossas histórias sagradas, histórias de nossas origens humanas, contam que nós surgimos das águas. A água é conhecida por nós como Opekõtaro = Lago de leite [1]. Também se utiliza o nome Tõko Taro = Lago de Suco Doce. Esses nomes significam que a água é origem da vida. Os mesmos nomes são utilizados para se referir ao Útero Materno = Opekãtaro, Tõko Taro. Assim como útero materno que gera a vida, assim também o universo tem seu útero que gera a vida que é o Mundo das Águas.
Os Yepa Pirõ Porã (Yepa Filhos de Cobra), um dos grupos do Yepa Masa (Tukano)afirmam que as mulheres de todos os povos indígenas habitavam no Lago do Alto, do Universo, Lago de Leite do Alto [2]. Foram elas que trouxeram a água para esse Patamar – Terra. Eles contam que ao redor desse lago do alto já habitavam muitos seres vivos e plantações. Por isso, entende-se que esse mundo com tudo o que nele existe é o reflexo do alto e vice-versa.
Rituais indígenas: discursos, benzimentos, danças, ritmos, pinturas…
Nós indígenas da região do alto rio Negro fazemos nossos rituais festivos e simples através de alguns momentos do ciclo da vida humana e da natureza. Destaco dois momentos: no primeiro banho do recém-nascido e no primeiro banho após primeira menstruação: o sábio com seus poderes espirituais protege a vida da criança e da natureza, utilizando o cigarro e breu que serão defumados no corpo humano, no caminho ao porto e na água. Assim que ele cria a harmonia entre o ser humano, a natureza e todos os seres vivos, isto é, criar uma convivência respeitosa entre nós humanos e outros seres.
Os nossos sábios explicam-nos que os rios são formados por cinco tipos de água: Rios de Água Branca, Rios de Água Preta, Rios de Água Verde, Rios de Água Barrenta e Rios de Água Transparente [3]. Nossos sábios dizem que em todos os tipos de águas existem muitos “espíritos nocivos” que podem fazer mal para nossas vidas humanas. As funções dessas forças nocivas podem ser revertidas pelas forças de agenciamento do sábio, de tal maneira que não nos prejudique. Esses “espíritos” estão presentes nas espumas das águas, nas águas paradas, nos lagos, nos chavascais, no lodo, nos alagados, nos igapós. Para nós eram “seres invisíveis; espíritos”, mas a ciência mostra que são micro-organismos invisíveis a olho nu, mas possíveis de seres vistos com microscópios: bactérias, vírus, ácaros, protozoários, algas e fungos. Nossos sábios agenciadores da saúde e enfermidades inutilizam todas as forças nocivas desses “espíritos” que podem prejudicar o Bem-estar das pessoas, causando-lhes as diversas doenças: dores de cabeça, queimaduras, tosses, coceiras, gripes. O sábio dá também para esses “espíritos” leite da vida, suco de fruta doce. Transforma as espumas, águas paradas, lagos, chavascais, lodo, alagados e igapós em Leite de Vida.
Em todas outras festas em diversos ciclos da natureza e dos trabalhos fazem rituais para o apaziguamento das forças noviças à existência humana e criar o equilíbrio ente todos os seres vivos.
Donde se fundamenta essas forças de harmonização?
Os nossos sábios falam que os primeiros que beberam a água foram: Basebo = Deusa/Deus da Alimentação. Ele e ela (Basebo) que beberam a água em nenhum momento adquiriram doença. Em nenhum momento, os “espíritos” nocivos causaram mal a Eles, assim também não farão mal para os seres humanos. Enfim, os nossos sábios afirmam que nós e outros seres somos irmãos; um irmão não pode fazer mal ao outro irmão.
Muitos povos indígenas foram trazidos/levados pelos seres aquáticos: Cobra-de-Pedra, Pirõ Porã, Wai Masa… até os lugares de nossa emergência fora da água. Para o longo percurso de construção de nossas vidas denominamos Rotas de Transformações.
Nós acreditamos que Deus está nas águas, pois elas geram vidas, fecundam a criação toda, sacia a sede de todos os seres vivos. As águas são cheias de energias. As águas dos rios, onde ainda existem, correm exuberantes sempre para frente, em diferentes ritmos seguem seus destinos. As águas geram vidas e mortes, são belas, fortes, traiçoeiras e perigosas. Águas bonitas são nossas irmãs, amigas e companheiras de nossa existência, elas nos acompanham desde o início de nossa existência no ventre materno até o fim de nossa vida. Sabendo disso os mestres de benzimentos fazem rituais e cerimônias para apaziguamento das forças das águas e pedem às divindades para que as águas não prejudiquem a vida humana.
Fechando a conversa
Concluo dizendo a água que está em nós e está presente em diversos lugares. Quem nunca viu a água? Quem nunca sentiu sua falta? Água é nossa vida! Ela nos refresca, dá sensação de bem-estar, alívio, paz. Água vocês é maravilhosa. Outras vidas e outros seres vivos recebem e previsão de você, amiga água! As belas plantas balançam suas exuberantes folhas quando pegam chuva e suas raízes vai ao fundo beber da fonte! A água deixa as cores verdes elegantes, exuberantes, vivas, cheias de entusiasmo!
Os inúmeros seres vivos, voadores, rastejantes, mergulhadores renovam-se! Amiga chuva/água vocês faz as sementes brotarem e crescerem. Ajudam no processo de amadurecimento das frutas, dos alimentos, e o ser humano se alimenta fica forte e fica robusto. Amiga chuva/água você é essencial para nossas vidas. Você está dentro de cada ser vivo. Quando você falta os seres vivos morrem.
Lutar pela água é lutar pela vida, vida de todos os povos, de todos os seres vivos, vida das florestas, vida dos peixes, animais e vida do universo. Não dá para cruzar os braços e ficar na arquibancada para ficar olhando o que vai acontecer. Precisamos entrar no jogo da vida! É para isso que existe a missão da Rede Eclesial Pan-Amazônica. É com a finalidade que são existem esses momentos para tomar consciência e trabalhar pela vida! Obrigado!