Manaus tem sido uma das cidades brasileiras que mais expressou a tragédia da pandemia do novo coronavírus, mostrando as deficiências dos seus sistemas de saúde e de solidariedade social. Esta situação foi gestada pela histórica irresponsabilidade dos poderes públicos locais frentes às necessidades da população, ensejando múltiplas investigações, cassações de mandatos públicos e até prisões.
Essa criminosa conduta se manifestou ao longo desta pandemia na falta de oxigênio nos hospitais, na inexistência de respiradores para o tratamento da Covid-19 e na apropriação privada de recursos públicos, ocasionando elevado número de mortes que chocou o Brasil e o mundo.
Contribuindo com este cenário de tragédia destaca-se a privatização do abastecimento de água e esgotamento sanitário, que torna tais serviços inacessíveis às populações mais pobres.
O objetivo principal da privatização não é a universalização dos serviços prestados, mas incentivar a iniciativa privada possibilitando-a ampliar os seus lucros e rendimentos no mercado. Assim, os empresários prioritariamente querem receber em dobro o dinheiro que investiu, ignorando qualquer fator humano e social que possa impedi-los de alcançar tal expectativa. Trata-se, literalmente, da primazia do dinheiro na vida humana e social.
Essa realidade é exposta em Manaus à medida que avaliamos o desempenho da concessão privada a partir do momento em que a multinacional Lyonaisse des Eaux – Suez assumiu a gestão dos serviços de água e esgoto na cidade, em julho de 2000. Tal concessão já passa de vinte anos de duração, sendo operada por grandes empresas do saneamento: Solução para a Vida (SOLVI), Águas do Brasil e atualmente Aegea Saneamento e Participações SA.
Mesmo com expressivos recursos públicos à disposição e um gigantesco reservatório de água doce, as empresas ainda adiam a universalização do abastecimento de água potável em Manaus, obrigando milhares de famílias viverem sem este bem essencial, situação inadmissível até em lugares onde há recursos hídricos reduzidos. Como sendo um elemento imprescindível para a prevenção da Covid-19, a falta deste serviço colabora para o avanço da pandemia em Manaus, deixando as populações mais pobres impossibilitadas de realizarem a higiene necessária.
Esperando chegar mais recursos públicos, as empresas privadas também não cumprem a sua obrigação no que diz respeito ao esgotamento sanitário. Vivemos a condição vexatória de termos serviços de coleta de esgotos somente em 19,90% da cidade (SNIS 2019). A falta de coleta e tratamento dos esgotos prejudica não somente as pessoas, mas também os cursos de água doce, como rios e igarapés, expondo a negligência socioambiental das empresas que assumiram esses serviços ao longo de duas décadas.
As tarifas cobradas pelas empresas constituem outro elemento que expõe os verdadeiros interesses da iniciativa privada no setor de saneamento. Para satisfazer os investidores nacionais e estrangeiros, a concessionária Águas de Manaus tanta atualmente para impor um reajuste tarifário de 24,5%, promovendo indignação em toda a cidade. Com tal reajuste, a empresa oferece em Manaus a água mais cara da Amazônia, reforçando uma cruel tradição iniciada com a privatização.
Trata-se de transformar o acesso à água em privilégio para aqueles que podem pagar, negligenciando as condições econômicas dos setores mais pobres da cidade. Esta iniciativa se reveste de constrangedora crueldade na medida em que enfrentamos uma crise generalizada, que tem afetado não somente a saúde da população manauense, mas também as dimensões sociais e econômicas da cidade, lançando muitos em condições de pobreza e indigência.
Ao mesmo tempo a concessão permanece entre as piores colocações no ranking das grandes cidades brasileiras, segundo o Instituto Trata Brasil. Este pódio reflete os efeitos de uma política de exclusão materializada na negligência das populações mais pobres e na morosidade da implantação da tarifa social, que beneficia apenas 28% das famílias que têm direito, deixando mais de cem mil núcleos familiares sem este importante auxilio (MDS, 2021).
Como atores principais do mercado, as empresas não se interessam pelas questões sociais dos territórios. Elas buscam prioritariamente maximizar os seus lucros, satisfazendo as aspirações dos seus investidores que vivem fora da Amazônia, ignorando as necessidades e urgências dos nossos povos. Esses investidores saem pelo mundo à procura de locais favoráveis para os seus negócios milionários, encontrando na Amazônia uma chance de ampliar os seus rendimentos, independente das condições que vivemos.
A estes financistas e empresários não interessam se passamos fome ou sede, morremos ou vivemos, amamos ou odiamos, sofremos ou regozijamos. A eles só interessam multiplicar os seus lucros e consolidar os seus promissores negócios, exigindo condições favoráveis e apoio absoluto dos governos locais. Para isso, integram redes de pressões e lobbies que influenciam as decisões governamentais, numa total indiferença aos prejuízos sociais e ambientais dos territórios.
Subvertem a democracia a seu favor, retirando o poder das populações nativas e impondo a sua vontade para favorecer os seus empreendimentos. Eles se opõem às democracias populares, que buscam garantir direitos e erradicar as desigualdades, pois eles vivem das desigualdades e apoiam as estruturas injustas que os ajudam a acumular mais riqueza e poder. Trabalham incessantemente para a fragilização das organizações que querem mudanças significativas das sociedades.
Querem sociedades submissas aos ditames daqueles que comandam a economia para que possam transformar tudo em mercadoria: a água, a terra, a vida. Fazem aliados em todas as instâncias de governos, a fim de garantirem os seus interesses. Assim, consolidam a tirania do dinheiro baseando-se em informações falsas e manipuladoras. Querem dinheiro e excluem aqueles que não o têm, os mais pobres.
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