A iniciativa privada assumiu a gestão dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário da cidade de Manaus no ano 2000, pagando uma bagatela de R$ 193 milhões (valores da época). Preço inferior ao valor de mercado, que correspondia a R$ 486 milhões, segundo os cálculos realizados na ocasião.
Representado pela empresa Lyonnaise des Eaux – Suez, o mercado do saneamento vibrava de satisfação, pois tratava-se da maior cidade da Amazônia, com imensa rede de consumidores, capaz de enriquecer ainda mais os empresários e acionistas interessados em explorar os recursos naturais e espoliar as populações urbanas.
O principal álibi usado para justificar o negócio foi o argumento da eficiência privada, que foi apresentado como sendo capaz de solucionar em pouco tempo todos os problemas de saneamento da capital amazonense, oferecendo satisfação e tranquilidade aos moradores, além de sustentabilidade ambiental. As promessas não eram poucas… O Plano de Metas estabelecia que em 2021, Manaus já tivesse 98% da sua população usufruindo de um serviço adequado de abastecimento de água e 90% dos manauaras gozassem de serviços satisfatórios de coleta e tratamento de esgoto.
Hoje podemos perceber com clareza que o discurso da eficiência privada não passava de uma falsa, engendrada pelos empresários do saneamento e pelos gestores públicos descomprometidos com o bem da população. A farsa foi aos poucos desmontada. A irresponsabilidade da iniciativa privada não demorou aparecer. Diante das pressões e reclamações provenientes de todas as áreas da cidade, a Câmara dos Vereadores do Município instaurou, em 2005, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI 2005) para investigar a precariedade dos serviços de água e esgotos de Manaus, constatando a inviabilidade do contrato de concessão e recomendando a sua imediata interrupção. No entanto, a CPI 2005 foi ignorada pelo gestor municipal e silenciada pelo aparato público.
A precariedade dos serviços de água e esgoto era proclamada aos quatro ventos, sendo registrada de forma dramática em manifestações populares, em denúncias jornalísticas e em processos judiciais. Em 2012, novamente a Câmara Municipal de Manaus reage, instaurando outra Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI 2012) para averiguar os responsáveis pelos desmandos. A esta altura, os serviços oferecidos pela concessionária eram inaceitáveis. O discurso da eficiência privada não tinha mais o menor sentido. Enquanto isso, as empresas obtinham volumosos rendimentos extraídos da população e dos cofres públicos, através de financiamentos facilitados.
Em 2015, o Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas acabou com parte dos privilégios do empresariado do saneamento, anulando a 3ª cláusula contratual que permitia o gestor municipal realizar com recursos públicos as obras do saneamento. Era inconcebível, para o TJAM, assim como para qualquer consciência bem informada, que os cobres públicos custeassem as obras do saneamento enquanto os empresários se encarregavam somente de geri-las e lucrar às custas do suor da população!
Atualmente, é fácil perceber que as metas assumidas na época da privatização estão distantes do cumprimento. Os índices oficiais afirmam que 98% da população recebem serviços adequados de abastecimento de água (SNIS 2019), mas para quem conhece as periferias de Manaus é fácil perceber que tais índices estão distantes da realidade. Não é novidade que extensas e populosas franjas da cidade ainda padecem com a falta de abastecimento de água. A má qualidade deste serviço é exposta através das informações do Programa de Defesa do Consumidor, que posiciona a concessionária Águas de Manaus entre as empresas mais reclamadas da cidade (Procon-AM 2020).
Os serviços de esgotamento sanitário indicam inequivocamente que a eficiência prometida na época da privatização não passa de uma enganação. Com duas décadas de privatização, os índices oficiais mostram que somente 19,5% da população possuem coleta de esgoto e somente metade deste contingente usufruem de tratamento de esgoto (SNIS 2019). Lançando os esgotos nos igarapés, percebemos que a preocupação ambiental não integra o ethos da concessionária privada.
Os dados do Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS) servem de base para elaboração do Ranking brasileiro do saneamento produzido pelo Instituto Trata-Brasil. Tal Ranking confirma todo o exposto até aqui, indicando que Manaus se posiciona entre as piores cidades brasileiras. A eficiência privada que prometeu resolver os problemas de saneamento, impôs o amargo 89º lugar para Manaus, entre as 100 maiores cidades brasileiras, depois de duas décadas de operação.
Cobrando a tarifa mais cara da região amazônica (R$ 5, 52/m³), os serviços de água e esgoto dificilmente serão universalizados, pois esses elevados preços dificultam consideravelmente o acesso das populações mais pobres a esses serviços. Mas isso não importa ao mercado da água. A ele somente interessa continuar a sua trajetória ascendente de ampliação de lucros.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.