A construção do terminal portuário das Lajes coloca em estado de alerta diversas organizações e coletivos que se preocupam com a manutenção da biodiversidade na Amazônia e com a qualidade de vida das pessoas que habitam nesta região.
Trata-se de um projeto que está sendo articulado de forma silenciosa pela empresa Lajes Logística S/A e poderes públicos (Governo do Estado do Amazonas, Prefeitura Municipal de Manaus e Superintendência da Zona Franca de Manaus), além de entidades empresariais, como a Federação das Indústrias do Estado do Amazonas e o Centro dos Dirigentes Logistas, visando instalar um porto fluvial na margem esquerda do Rio Negro, em prejuízo do complexo natural do Encontro das Águas e comunidades do entorno.
Além de descaracterizar o espetáculo natural do famoso “encontro das águas” do Rio Negro com as do Rio Solimões, as obras afetarão irremediavelmente a existência de diversas espécies vivas da fauna e da flora locais. O empreendimento também produzirá impactos negativos para vida de comunidades humanas, como o Bairro Colônia Antônio Aleixo, na medida em que ameaçará atividades pesqueiras e turísticas e causará danos à bacia do Puraquequara, contaminando as suas águas.
Seguindo a lógica de boa parte dos projetos implantados na Amazônia, esta obra evidencia a indiferença dos poderes públicos e das grandes empresas capitalistas em relação aos efeitos negativos de suas invenções no meio ambiente. Trata-se de ignorar a variabilidade dos organismos vivos do entorno do Encontro das Águas, assim como o seu dinamismo vital e os complexos ecológicos dos quais eles fazem parte, optando por uma visão estreita e utilitarista que reduz todas as coisas à ótica econômica em nome da ideologia do progresso.
A diminuição da diversidade afeta as adaptações dos seres vivos às perturbações. Portanto, a biodiversidade tem um papel ecológico fundamental para os processos de regulação dos ciclos bioquímicos e para a sobrevivência da humanidade. Intervenções reguladas exclusivamente pela racionalidade economicista costumam causar danos ao dinamismo vital subjacente aos ecossistemas naturais prejudicando a qualidade da vida humana, sobretudo, das populações mais pobres.
Sob o paradigma economicista, quando se fala em biodiversidade, no máximo, pensa-se nela como um reservatório de recursos econômicos que poderia ser explorado, mas não se considera seriamente o valor real das coisas, o seu significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos pobres.
A Amazônia é palco histórico de intervenções predatórias contra a sua biodiversidade, sendo que os danos produzidos rebatem principalmente sobre as populações mais frágeis: indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores e habitantes das periferias. É o racismo ambiental (ou injustiça socioambiental) em que os danos causados pelas ações sobre o meio ambiente são transferidos para as classes socialmente mais vulneráveis. Tais injustiças resultam da implantação de políticas e projetos comandados por setores elitizados, interessados em ampliar os seus lucros, sem o mínimo de consciência ética e ambiental.
Os danos sociais a serem causados pela construção do Porto das Lajes nos remetem à precariedade dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário da cidade de Manaus na esteira da privatização da subsidiária Manaus Saneamento (Cosama), empresa estatal vendida para a iniciativa privada, no ano 2000. Aqui também, as populações mais pobres das periferias manauenses constituem as mais afetadas pela falta de investimento da empresa. Estas populações absorvem todo o impacto negativo dos serviços privatizados: falta de água e esgotamento sanitário, baixa qualidade da água potável, tarifas abusivas, direitos violados (reduzida implantação da tarifa social), doenças de veiculação hídrica e até óbitos.
Embora seja verdade que as alterações no meio ambiente produzem perturbações de ampla abrangência, pois nos ecossistemas “tudo está interligado”, os estudos também demonstram que os setores mais pobres sofrem de forma mais violenta os danos causados pela intervenção do homem no meio ambiente. Os casos mais conhecidos de rompimento de barragens mostram esta realidade: barragens de Mariana/MG e barragem de Brumadinho/MG. Estes empreendimentos são geridos por grandes empresas privadas, que se utilizam dos argumentos sobre a importância do progresso, mas ignoram e, até escondem, os riscos sociais e ambientais provenientes da mineração predatória. Tragédias, destruição e mortes são os resultados destes projetos irresponsáveis.
A construção do Porto das Lajes indica que os poderes públicos e sociedade em geral ainda não se conscientizaram da necessidade da manutenção da biodiversidade para a existência da humanidade. Eles também não demonstram interesse em aprender com as tragédias causadas pela intervenção predatória do homem no meio ambiente, transmitindo a ideia de que o ímpeto moderno do progresso não deve ser regulado por nenhuma preocupação social, ecológica ou cultural.
No contexto atual de neoliberalismo econômico, em que o mercado é insuflado a intervir em todas as dimensões da sociedade, é necessário recordar que a proteção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e benefícios. A prática tem mostrado que o ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente.
O Papa Francisco também afirma que não é realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha para considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações (Laudato Si). De fato, dentro do esquema do ganho não há lugar para pensar nos ritmos da natureza, nos tempos de degradação e regeneração, e na complexidade dos ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela intervenção humana.
A privatização do saneamento básico em Manaus demonstra que é inviável deixar que direitos fundamentais sejam regulados pela lógica da obtenção de lucros e não é plausível esperar que esta lógica considere a complexidade ecológica do encontro das águas e a sua importância para a vida das populações do entorno. É necessário que os poderes públicos mudem a sua posição na elaboração de projetos e políticas públicas. É urgente que eles não vejam apenas a defesa das empresas, mas vejam principalmente a defesa dos pobres e da vida do planeta.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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