Há um certo sentimento de propriedade entre o torcedor e seu clube. O aficionado do futebol vê seu time como se fosse coisa sua, íntima, que pudesse pegar e levar consigo a qualquer momento. Sob a mesma bandeira abrigam-se amigos e inimigos, vítimas e algozes, somente solidários em tal situação ou circunstância, ao comungarem o desejo de ver a vitória da equipe de suas preferências. É incrível, mas brasileiros e brasileiras são capazes de largar tudo, mudam de partido, de mulher ou de marido, de amigos, reveem prazeres estratificados, mas jamais abandonam o grêmio de sua paixão. E a torcida feminina é ainda mais apaixonada e radical.
Com elevado grau de proximidade, a relação do devoto com a agremiação é quase sempre histórica. O vínculo vem de berço e galvaniza-se durante a infância e a juventude. Foi o que ocorreu comigo, herdei dos meus a paixão pelo clube que me proporcionaria emoções pela vida afora. Filho de português, meu pai quebrou a tradição, ao deixar de torcer pelo Vasco da Gama. Elegeu o Botafogo, enquanto os demais irmãos mantiveram-se fieis à escolha ditada pela origem. Um deles, Álvaro Onety de Figueiredo, foi durante muitos anos advogado do clube cruz-maltino no Rio de Janeiro. Pelo lado materno, meu tio Alfredo Bastos de Moraes Rego, médico na antiga capital federal, pontificou como atleta do glorioso, numa época em que o futebol atraía segmentos com destaque na sociedade.
Interessante é que até hoje sempre estabeleço algum liame entre o futebol e a política. Independente do fervor característico presente numa e noutra opção, havia razões que me empolgaram desde muito menino. Lembro que no salão de minha casa na Velha Serpa havia uma fotografia do escrete campeão do Botafogo, ao lado de uma reprodução da Carta Testamento do presidente Getúlio Vargas, com molduras que valorizavam os dois fatos que sempre comoveram meu pais.
Eram predileções bastante cultivadas. O velho Adamastor Onety de Figueiredo foi um dos fundadores do PTB de Vargas no Amazonas. E, além de torcedor ardoroso do clube do Rio, entendeu que também deveria criar um outro em Itacoatiara, ao lado de amigos e amantes do alvinegro.
É assim que nasce o meu Botafogo, em família, preferência plena, que mais tarde alcançaria o ápice, sob a influência arrebatadora da geração brilhante capitaneada pelas pernas tortas do gênio de Mané Garrincha, maestro divino do improviso. Uma galeria que se formava para a eternidade, constituída por Nilton Santos, Didi, Manga, Amarildo, Zagalo e Quarentinha. Com eles, também inspirados na herança que receberam de grandes nomes do passado, memória que remontava ao mito de Heleno de Freitas, tinha-se toda a magia no domínio da bola, sob os influxos da alegria de um futebol solto, com ginga, criativo e bem brasileiro.
Foi nesse período que conquistamos nossas maiores glórias, um tempo em que se pedia o ‘bicho’ adiantado, como fazia Manga, ao jogar contra o Flamengo, ciente da vitória inexorável. Momentos que fizeram do Botafogo presença dominante na seleção brasileira, para a conquista na chamada era de ouro dos campeonatos mundiais de 1958, 1962 e 1970.
Não há como deixar de recordar a bola de Garrincha na trave dos russos em 1958, logo no início do jogo contra a União Soviética, deixando o Brasil inteiro com o coração na mão, ainda sofrendo sob o fantasma da derrota no Maracanã contra o Uruguai. Temia-se mais um capricho dos deuses do futebol, imposição do imponderável, que poderia repetir o sofrimento nacional, o silêncio e o lamento coletivo e profundo diante do gol de Alcides Ghiggia. Mas a pressão continuava e logo se tornaria irresistível, durante o que os cronistas passaram a considerar os três minutos mais grandiosos do esporte tupiniquim. Vavá, o vascaíno de meu avô Álvaro de França e Figueiredo, marcou e colocou nossa seleção na liderança do placar. Encurtava-se assim o caminho do título, afinal conquistado com a derrota da Suécia pelo escore de 5 a 2.
Revelo que chorei nas comemorações. A pequena cidade dos meus primeiros anos vestiu-se de verde e amarelo, mas também não faltaram as cores do meu alvinegro, na praça e em cada rua central, sob os auspícios de seu botafoguense mais reconhecido. Ganhou a seleção, mas venceu com o Botafogo, fazia questão de destacar meu querido pai. É verdade, guardávamos então no elenco os mais notáveis craques do país, uma orquestra afinada pela fantasia e pela ternura com que Garrincha tratava a bola e comovia os amantes do futebol arte.
Muito mais tarde, ao participar do governo Brizola no Rio de Janeiro, tive oportunidade de reunir com botafoguenses da melhor cepa que compunham a administração fluminense. Em encontro no gabinete do secretario de Transportes, meu saudoso amigo José Colagrossi, fogão roxo, cuidamos de lutar pela recuperação da sede histórica do clube, uma iniciativa que depois teria êxito.
Na ‘pátria de chuteiras’, expressão do talento do tricolor Nélson Rodrigues, sou muito mais Botafogo, que mexe com minha alma e me enche de contentamento. Vibro com suas conquistas e padeço com seus insucessos.