A Organização das Nações Unidas (ONU), através do Relator Especial dos direitos à água potável e ao esgotamento sanitário, reconheceu os riscos que a privatização destes serviços provoca ao cumprimento dos direitos humanos. Baseado em consultas públicas e experiências realizadas em várias partes do mundo, o relatório oficial da instituição (A/75/208), publicado em 21 de julho de 2020, expõe uma forte preocupação em relação aos processos privatização, indicando que eles podem dificultar a universalização dos serviços de água e esgoto, promovendo a violação dos direitos humanos, na medida em que são implementadas políticas de retrocessos neste setor.
O Relatório da ONU destaca que tais processos de privatização fazem “parte integrante de uma filosofia econômica e social de governança”. O documento frisa que a transferência dos serviços públicos ao setor privado tem sido justificada por meio de argumentos, como a superioridade do desempenho da gestão privada e o fracasso do setor público em fornecer serviços adequados devido a uma combinação de ineficiência, corrupção e responsabilização frágil. No entanto, é destacado também que a privatização é geralmente realizada com grande oposição social e política, diante das evidências de que ela promove mais desigualdade e pobreza, comprometendo a efetivação dos direitos humanos.
Os processos de privatização são resultados de pressões para a redução do papel do Estado, para que o setor privado possa prosperar e entregar benefícios sociais. Mas, ironicamente, diante das crises deste setor, o Estado tem sido convocado para oferecer apoio econômico e protegê-lo dos colapsos e de suas vulnerabilidades. A pandemia, segundo o Relatório, apresenta-se como um exemplo nítido da necessidade da intervenção do Estado, suspendendo o pagamento das contas de água, proibindo temporariamente os cortes e reconectando as pessoas aos serviços, a fim de garantir água suficiente para a lavagem das mãos.
As instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os bancos multilaterais, têm desempenhado um papel central nos processos de privatização, por meio da imposição de condicionalidades aos Estados que buscam empréstimos, alívio da dívida e ajuda setorial. Nos países em desenvolvimento, a privatização como uma condicionalidade para as reformas do setor de saneamento, com base em abordagens neoliberais, tem sido uma prática generalizada das instituições financeiras internacionais desde os anos 1980.
A prestação de serviços de água e esgotamento sanitário por empresas privadas conduz a um determinado conjunto de riscos aos direitos humanos, baseados em uma combinação de três fatores: maximização do lucro, monopólio natural que caracteriza a prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário e o desequilíbrio de poder.
Em primeiro lugar, o objetivo da realização do lucro, típico do setor privado, é frequentemente expresso como maximização do lucro, em que os prestadores tentam extrair o máximo de ganhos líquidos da prestação de serviços, seja reduzindo custos, aumentando receitas, ou ambos. No entanto, a maximização dos ganhos dificulta o acesso dos serviços às pessoas mais empobrecidas, prejudicando o cumprimento dos direitos. Para aumentar os lucros, as empresas podem exercer pressão sobre as autoridades públicas para aumentar as tarifas, elevar ou criar tarifas de ligação aos serviços ou autorizar novas fontes de ganhos.
Em segundo lugar, o fato de haver um monopólio natural, no qual um único prestador opera numa cidade, implica que os órgãos reguladores estão mais expostos ao risco de captura pelas empresas. Além disso, ao lidar com prestadores privados, questões relacionadas às regras do mercado internacional podem reduzir a capacidade dos órgãos reguladores de proteger os interesses dos cidadãos locais.
Terceiro, é muito comum que órgãos públicos com falta de recursos e de pessoal qualificado assumam o papel de supervisionar e monitorar o prestador privado. Essas autoridades carecem de força política e financeira para negociar condições favoráveis com empresas transnacionais ou para ter sucesso em conflitos jurídicos. Outra faceta da desigualdade de poder é a posição dominante ocupada por atores privados nos fóruns de decisão, permitindo aos empresários o acesso aos principais tomadores de decisão e gerando oportunidades de influenciar as decisões a seu favor.
Esses fatores destacados pelo Relatório da UNO demonstram que a transferência de serviços públicos à iniciativa privada implica grandes perigos para os direitos humanos, muitas vezes escondidos durante o processo de privatização. Diante disso, o avanço das privatizações no Brasil provoca intensas preocupações quanto ao cumprimento de direitos básicos, entre eles o direito à água potável e ao saneamento.
A experiência de privatização dos serviços de água e esgoto de Manaus reforça essas preocupações, visto que em vinte anos de concessão privada tais serviços apresentam baixos níveis de desempenho, de acordo com o novo ranking do saneamento que reúne as principais cidades brasileiras (Instituto Trata Brasil).
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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