Os apelos globais, desde Estocolmo (1972) passando pela Ri0-92 e pela Rio+20, não tem surtido os efeitos necessários para resguardar uma certa qualidade ambiental no planeta. É necessário que um urgente grito ambiental desperte as consciências e as ações de sociedades e de governos para com as urgências do ambiente planetário.
Ar, solo, água, flora, fauna, diversidade biológica, ecossistemas, dentre outros bens essenciais à vida, apesar das tardias iniciativas antrópicas, não tem sido preservados o suficiente para manter a vida de espécies nem da diversidade humana na espaçonave terra.
Os indicadores de degradação e de poluição dos ecossistemas e de recursos ambientais, em especial dos não-renováveis, são ainda mais alarmantes, como também a produção e o destino inapropriado dos lixões, a pobreza, a miséria, a violência e a criminalidade são indicadores da decadência da qualidade de vida e do equilíbrio ambiental terrestre.
Por essa razão as medidas de esclarecimento, orientação e conscientização ambiental devem se ampliar e intensificar, de modo que esse grito ambiental possa resultar em ações concretas da parte de indivíduos, de empresas, de instituições, de governos e de coletividades para que se proteja a vida e o que resta da qualidade do ambiente planetário.
O grito de Munch
A imortal tela expressionista “O grito” (1893), obra de Edvard Munch (1863-1944), pintor norueguês, serve de inspiração para que a cidadania ambiental ecoe novas práticas e compromissos com vistas a revisar urgentemente a perspectiva de ambiente planetário. Segundo trecho colhido do diário de Munch, a preocupação com a natureza ou meio ambiente teria sido a inspiração original da tela “O grito”. Diz Munch em seu diário:
“Passeava com dois amigos ao pôr do sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta – havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fiorde e sobre a cidade –; os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza.”
A arte de Munch retrata a vida, em suas angústias e dramas, e expõe temas como a dor, a doença e a morte, assunto nem sempre belos, mas que fazem parte da experiência humana e dos desafios a suplantar, tal como o declínio ambiental do planeta e da qualidade da vida de modo global.
O declínio ambiental de Gaia
Os bens, os recursos e a qualidade do meio ambiente planetário tem sistematicamente sofrido com os impactos nocivos do modelo de produção econômica, de modelos políticos mafiosamente apodrecidos, de instituições viciadas e obsoletas, da deterioração, da poluição e da conversão do ambiente terrestre num insustentável lixão. Cada vez mais, o ambiente é transformado em algo sem beleza, esvaziado de sentido humano e deteriorado por uma ávida corrida por acumulação e concentração de “riquezas”, sobretudo de caráter financeiro.
Qual o sentido de tão poucos possuírem tanto e a grande maioria dispor de quase nada? De acordo com a obra do economista francês Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”, lançada ano passado, as 400 pessoas mais ricas dos Estados Unidos possuem o equivalente ao que tem cerca de 130 milhões de adultos, metade da população estadunidense. Que função cumprem esses 400 americanos com o que possuem? Cada um com patrimônio superior a US$ 1,5 bilhão? O economista aponta ainda que está em andamento um processo de escandaloso aumento da desigualdade econômica a partir de regiões centrais (EUA e Europa). Em que condições ambientais e de dignidade existirão as atuais e as futuras gerações? O que irão dizer os historiadores daqui a 150 anos sobre nossa inconseqüente época?
Estamos sujeitados a um sistema socioeconômico global de extremas contradições, ainda mais acentuadas sob intensos conflitos de fervor religioso. Como ressaltou o astrofísico Hebert Reeves: “O Homem é a mais insana das espécies. Adora um Deus invisível e mata uma Natureza visível… sem perceber que a Natureza que ele mata é esse Deus invisível que ele adora.” Pouco se faz diante das exigências da no planeta. Na prática, ignoram-se as mesmas e se desprezam caminhos essenciais, tal como apresentado por Mahatma Ghandi: “Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome.”
A maior parte da humanidade é dependente de um modelo econômico e de arranjos políticos que a destrói, destroçando também celeremente a qualidade e o equilíbrio ambiental do planeta. Chegamos ao tempo em que não é mais suficiente que cada um somente faça a sua parte. É preciso fazer também pelos outros, aqueles que não fazem nem nunca farão, permanecendo aprisionados na ignorância e nos delírios de consumo das sensações da economia de mercado. Uma forma de manter a civilização do consumismo viciada e dependente do modelo autofágico. Contudo, chegamos ao tempo no qual não dá mais apenas pra pedir às pessoas que troquem equipamentos ou comprem carros que poluam menos. A situação crítica a que chegamos vai além de certas escolhas individuais e demandam ações decisivas e em grande escala de governos e corporações econômicas, financeiras e industriais. Efetivamente, é necessário o envolvimento de todos, do local ao global, do indivíduo ao Estado, do empregado à grande corporação.
Articular e ampliar o grito ambiental faz-se tão necessário quanto urgente, uma vez que se tem ignorado sistematicamente os apelos planetários, mesmo em face de tantas ocorrências trágicas e destrutivas. É o que nos adverte o biólogo americano Edward Osborne, criador da expressão “biodiversidade”: “Agora que o ser humano deixou sua marca implacável, a “sexta” extinção em massa teve início, se nada for feito para manter o equilíbrio natural, entraremos numa era que tanto os poetas quanto os cientistas podem chamar de “era da solidão” e teremos feito tudo isso sozinhos e conscientes do que estava acontecendo.”
Gaia e a Era da feiura
Gaia não é mais a mesma. A feiúra tomou conta do ambiente planetário. Tudo o que abunda é lixo por toda parte. Lixo simbólico, lixo informacional, lixo econômico, lixo político, lixo religioso, lixo social… Explosão das sujeiras, das violências, dos crimes, das lamas e dos lixões que refletem as injustiças, as corrupções e as imensuráveis contradições socioeconômicas e políticas. Há cada vez mais milhões de toneladas de lixo produzidas diariamente por uma cultura do consumismo exacerbado, da injusta acumulação/concentração de riquezas, do reducionismo da condição humana ao aparente, do naniquismo ético e do apodrecimento político. É imprescindível que um grito ambiental conseqüente que nos acorde e nos lembre que existimos para a beleza.
Legislação e Educação
Questiona-se acerca dos instrumentos para lidar e transformar essa realidade. É quando geralmente se recorre à legislação e à educação. Lembra-se do quanto as leis ambientais e educacionais podem ser úteis para colaborar no processo de formação de uma nova postura com relação ao meio ambiente e qualidade de vida no planeta. Deposita-se nelas a expectativa de que conduzam à construção de uma nova perspectiva de qualidade ambiental planetária.
Porém, a questão ambiental não se restringe à falta ou à inefetividade das leis ambientais e educacionais. A problemática ambiental alcança de modo mais abrangente aspectos fundamentais ligados à formação cultural dos povos e de suas instituições sociais, política, econômicas… Requer um nível mais profundo de consciência, de sensibilidade, de efetiva coerência de vida e de participação na busca de uma perspectiva mais promissora para o meio ambiente global e a qualidade de vida da humanidade.
Descobre-se que, por mais que as leis existam formalmente, por si só, elas não asseguram uma transformação imediata, automática da realidade, como se esta fosse alterada instantaneamente “por decreto”. E que a existência de contradições profundas entre a realidade e o que dispõem as leis somente faz ressaltar a dependência destas da participação concreta das pessoas para justa efetivação dos direitos nelas previstos. O compromisso e envolvimento concreto da mesma sociedade, que autoriza a elaboração de tais leis por meio de representantes de algum modo escolhidos ou eleitos, é indispensável.
Enfim, apesar das leis existirem e serem parâmetros formais à vida coletiva, elas não se efetivam de forma automatizada nem prescindem da participação humana e da vontade consciente. As leis ambientais e educacionais são um primeiro passo em direção à perspectiva que apresentam, mas ambas dependem necessariamente da atuação dos cidadãos e de suas instituições (empresas, órgãos, poderes, organismos sociais…) para que a realidade efetiva seja transformada e se converta na realidade almejada, prevista nas leis e ensinada nas casas, nas famílias, nas escolas, nas comunidades, nas atividades laborais e nos diferentes círculos e segmentos sociais.
O grito ambiental em favor do que resta de Gaia
No cenário de constante escassez de recursos naturais elementares e frente à crise de resultados das iniciativas das instituições tradicionais, tanto do setor público quanto do privado, bem como do terceiro setor, é necessário retomar a ousadia do “grito” de Edvard Munch, expressando de modo claro e contundente a necessidade de que algo seja feito de verdade, que tenha conseqüências reais em favor meio ambiente planetário e da qualidade global de vida humana. Do contrário, de fato, não restará o que fazer senão lamentar o processo que leva ao triste fim de inúmeras espécies, inclusive a humana. Portanto, importa soltar ainda mais forte o grito ambiental, em toda parte, para que as pessoas e as corporações se mobilizem e atuem em favor do que resta de Gaia.
O enfoque das questões ambientais, sob o prisma da legislação ambiental e das leis educacionais, está sujeito a esse mesmo de movimento de gritar pela cidadania ambiental e em prol de que os direitos previstos nas leis sejam efetivados e contribuam para produzir essa nova realidade social de liberdade, de justiça e de solidariedade a que anseia a maioria das sociedades ocidentais abertas, inclusive a brasileira, conforme prevê o art. 3º, I, da Constituição Federal.
Um grito ambiental que faça nascer uma realidade que erradique o lixo da pobreza, da marginalização, da violência, da corrupção sistêmica, das injustas desigualdades sociais e regionais. Uma nova realidade ambiental de vida digna, livre e fraterna, em que, indo muito além do lixo, reserve espaço para a justiça e a beleza. Outro mundo possível, aonde prevaleça o desenvolvimento ao invés do tão concentrado crescimento. Um grito ambiental capaz de inspirar uma realidade que promova o bem de todos sem preconceito de origem, de raça, de sexo, de cor, de idade, de crença e quaisquer outras formas de discriminação. Uma realidade do belo, não de lixo.
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