Por Vinicius Sassine, da Folhapress
MANAUS – A empresa responsável pela operação da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, propôs pagamento de reparação de R$ 20 mil a pescadores que ficaram sem peixes no rio Xingu com o início de funcionamento da usina.
A proposta da Norte Energia foi feita após recomendação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que analisa a renovação da licença de operação da usina, e constatação de que milhares de pescadores – em especial na Volta Grande do Xingu – ficaram sem sua principal fonte de renda em razão de Belo Monte.
Centenas de pescadores manifestaram insatisfação com a proposta nesta terça-feira (22) em Altamira (PA), uma das cidades impactadas pela usina. Os trabalhadores discordam dos critérios adotados pela operadora de Belo Monte, especialmente da quantidade de pescadores – 1.976 – considerados aptos à reparação e a forma como a empresa toma as decisões.
“Desde que começou esse empreendimento, temos sido humilhados pela Norte Energia. A Norte Energia fez nossas vidas se tornarem dor, sofrimento e conflito. Ela faz isso de propósito porque quer nos colocar um contra o outro”, afirma uma carta do conselho dos povos tradicionais do médio e baixo Xingu.
“A empresa quer nos enfraquecer, minar nossa força e empobrecer nossa luta, ela quer nos matar devagar, nos deixar à míngua como faz com o rio Xingu e os peixes que habitam as águas dos rios”, cita a carta, escrita após a tentativa de reunião para detalhamento da proposta de reparação.
Em nota, a Norte Energia disse que presta assistência técnica aos pescadores desde 2016 e que só se manifestará sobre a proposta após apresentação dos termos aos trabalhadores.
“O quantitativo de 1.976 pescadores se refere a uma lista-base de pescadores, que já atuavam na fase rio e passaram a pescar na fase reservatório da usina de Belo Monte, feita durante oficinas participativas em que os pescadores foram cadastrados mediante autodeclaração, seguida por busca ativa”, diz a nota.
Reportagem publicada pela Folha de S.Paulo em 8 de outubro mostrou que pescadores já não têm peixes em quantidades suficientes; pescados desapareceram das dietas de ribeirinhos e indígenas; piracemas – os processos de reprodução dos peixes – deixaram de ocorrer; e a água liberada pela usina é insuficiente até mesmo para a navegabilidade de ribeirinhos.
Belo Monte funciona com uma licença de operação com prazo de validade vencido desde 25 de novembro de 2021 – há quase um ano, portanto. Para renovar a licença, a equipe técnica do Ibama cobrou, em junho, o pagamento de reparação aos pescadores, referente a um período de dois anos e dois meses em que a Norte Energia deixou de adotar ações de mitigação nas comunidades.
Primeiro, a empresa fez uma proposta divergente do que recomendou o Ibama: ela propôs repasses em três parcelas anuais para desenvolvimento de projetos de geração de renda.
Depois, a Norte Energia concordou com a verba de reparação, mas não apontou valores. Em documento ao Ibama no dia 9, a operadora de Belo Monte finalmente apresentou valores a serem depositados aos pescadores. Pela proposta, devem receber a reparação 1.976 pescadores cadastrados. O número é considerado insuficiente -Belo Monte impactou mais de 4.000 pescadores, segundo estimativas de órgãos e entidades envolvidos em ações de contenção de danos da usina.
Os R$ 20 mil a cada pescador devem ser pagos em duas parcelas, sendo uma no momento da assinatura de um termo de quitação e outra em 30 dias.
A proposta inclui uma verba de R$ 10 mil para custeio de projetos de geração de renda pelos pescadores, diante da diminuição de peixes no trecho do rio Xingu impactado pela usina. Essa verba deve ser paga em dois anos. Também deve haver assistência técnica por um período de três anos.
O Ibama indicou concordar com a proposta de reparação, sem entrar no mérito dos valores. O órgão ambiental afirmou que a definição do universo de pescadores a serem reparados dependerá da análise de casos de trabalhadores que pedirem inclusão.
Uma reunião em Altamira nesta terça-feira (22) serviria para apresentação da proposta a centenas de pescadores, que manifestaram insatisfação com os critérios definidos pela Norte Energia.
A discordância se estendeu até mesmo ao local da reunião indicado pela empresa, pequeno demais para a quantidade de trabalhadores interessados em ouvir a proposta. Foi necessário buscar um espaço maior. A reunião acabou adiada.
Além da briga por reparação, por condições mínimas de pesca e por assistência para projetos produtivos na região do Xingu, a demanda dos pescadores é por mais água.
O hidrograma adotado – a vazão de água liberada a partir do represamento para o funcionamento da usina – é insuficiente para a pesca como subsistência, e os pescadores não se adaptaram a outras atividades, como a plantação de cacau ou a criação de peixe em tanques. Assim, as famílias empobreceram e vivem em insegurança alimentar.
Um hidrograma chamado de consenso já é colocado em prática. Não há alagamento suficiente, porém, com esse hidrograma, para as fases decisivas de reprodução de peixes, como constatou um parecer técnico independente, elaborado a pedido do MPF (Ministério Público Federal) em Altamira.
Esse parecer foi feito pelos próprios ribeirinhos, por indígenas da Volta Grande do Xingu e por pesquisadores e técnicos de USP (Universidade de São Paulo), Unifap (Universidade Federal do Amapá), Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), MPF e ISA (Instituto Socioambiental).
O documento foi enviado ao Ibama no último dia 11, com a proposta de um hidrograma diferenciado, chamado hidrograma piracema, com sugestão de liberação de água superior ao praticado nos momentos-chave para reprodução dos peixes.
Os técnicos apontam no parecer que, em dezembro de 2021, o volume de água foi três vezes menor do que o proposto no hidrograma piracema e quatro vezes menor do que a média das vazões no Xingu antes de Belo Monte. O que os ribeirinhos constatam é que o rio não enche o suficiente de novembro a fevereiro.
O hidrograma de consenso é tratado entre Norte Energia e Ibama por meio de um termo de compromisso ambiental, segundo a operadora da usina. “A empresa tem o compromisso de executar ações de saúde, saneamento, atividades produtivas, melhorias da comunicação e de acessos terrestres, por exemplo”.
O Ibama não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Belo Monte teve os primeiros estudos de viabilidade elaborados na ditadura militar, na década de 1970. O governo Lula (PT) viabilizou as primeiras licenças, e as obras se deram no governo Dilma Rousseff (PT). No primeiro ano do mandato, o governo Jair Bolsonaro (PL) concluiu as unidades geradoras e inaugurou o conjunto completo.
Durante a campanha, o presidente eleito disse que faria Belo Monte de novo e que só um terço do projeto original foi posto em prática na gestão petista, o que reduziu os impactos.