A aprovação do novo Marco Regulatório do Saneamento Básico incentiva a transferência compulsória da gestão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário à iniciativa privada. Aposta-se na eficiência da iniciativa privada para tornar tais serviços acessíveis a todos os cidadãos. No entanto, a privatização já é adotada em Manaus há duas décadas, sugerindo que a universalização daqueles serviços exige soluções diferentes.
O contrato de concessão assinado pela empresa ganhadora do leilão estabelecia, nos termos da privatização (04 de julho de 2000), que a capital amazonense teria, nos dias de hoje, 98% da sua população acessando água potável durante 24 horas por dia. Ademais, o contrato determinava que atualmente 70% da população de Manaus estariam usufruindo dos serviços de esgotamento sanitário. A prática, no entanto, tem sido diferente, sinalizando a inviabilidade da privatização daqueles serviços.
As duas décadas de privatização dos serviços de água e esgoto em Manaus expõem o discurso falacioso da eficiência privada, mostrando a sua incapacidade de democratizar esses bens essenciais e o seu potencial perigo para o meio ambiente. Ao longo deste período de privatização, as populações de baixo poder aquisitivo (53% dos domicílios manauenses), ao encontrarem dificuldades no pagamento das tarifas, recebem serviços precários ou são totalmente abandonadas pela empresa.
Mesmo cobrando as tarifas mais caras da região amazônica (R$ 5,29 m³), a empresa presta serviços precários, cooperando para a deterioração da qualidade de vida da cidade. Os serviços de água e esgoto aparecem comumente entre os piores, levando a capital amazonense ocupar atualmente a 96ª colocação no ranking de desempenho das 100 maiores cidades do Brasil. Além de excluir do sistema de abastecimento hídrico grandes áreas da cidade (as mais pobres), a empresa Águas de Manaus (Aegea Saneamento e Participações) oferece os serviços de esgotamento sanitário somente para um reduzido segmento social, proporcionando o esgoto a céu aberto para mais de 85% da população.
Historicamente, os igarapés foram agredidos pelos projetos modernizantes impostos à cidade para favorecer a economia extrativista e predatória. Durante os últimos vintes anos, tal postura tem sido consolidada através de uma política antiecológica, na medida em que as concessionárias privadas lançam os dejetos e resíduos poluentes da maioria dos moradores naqueles cursos naturais de água responsáveis por uma das mais interessantes originalidades da capital amazonense. Assim, a gestão privada do saneamento é temerária não somente para a população manauara, mas também para o meio ambiente, que a envolve e lhe fornece as condições imprescindíveis para a sobrevivência.
O novo Marco Regulatório do Saneamento, ao incentivar a privatização dos serviços de água e esgoto nas principais cidades, se propõe expandir para todo o Brasil o modelo de gestão do saneamento adotada em Manaus. O sofrível desempenho dos serviços de água e esgoto alcançado em Manaus poderá ganhar grandes dimensões, provocando mais uma tragédia nacional. Este modelo de gestão aprofundará a desigualdade social brasileira, tornando aqueles serviços inacessíveis às populações mais pobres e contribuindo para ampliar os níveis de degradação ambiental.
O acesso universal aos serviços de água e esgoto somente poderá ser uma realidade palpável quando o poder público considera-los direitos essenciais. A privatização, ao contrário, os torna acessíveis somente aos que podem pagar, promovendo a exclusão das populações mais pobres. Apenar uma gestão pública, democrática e transparente, que almeja o bem-estar do conjunto da população poderá viabilizar a acesso universal destes serviços essenciais.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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