Por Diogo Rocha, do ATUAL
MANAUS – Filmar com a câmera do celular, manter a calma, e evitar um confronto que leve às vias de fato com um cliente são dicas de motoboys que trabalham com delivery por aplicativos para se respaldar juridicamente. A orientação é para produzir provas que auxiliem a polícia quando são ameaçados, coagidos e até agredidos no serviço de entrega.
Os casos de violência contra os profissionais de delivery de grandes plataformas, como Ifood e 99 Food, têm crescido no país. Capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre registram com frequência ocorrências de agressões e também homicídios de entregadores.
Líder do grupo ‘Rota 92’, que reúne mais de 150 motoboys, o entregador Kelvin Clay Barroncas de Souza, 32 anos, tem o serviço de entregador como principal fonte de renda desde 2017. Ele trabalha, em média, 12 horas por dia e ouviu várias reclamações, algumas ifundadas, de clientes.
“O cliente entendeu que o delivery é um serviço de quarto [de hotel]. Até brincamos com isso, que temos que chegar lá [no endereço de entrega] e dar na boca dele. Não. Estou ali para fazer o delivery. As pessoas olham o entregador como um funcionário deles”, disse.
Conforme Souza, as queixas mais comuns são sobre “atraso” na chegada, por exemplo, de uma comida ao endereço e a recusa de um entregador em deixar o produto na porta do cliente quando mora em condomínio fechado. Nestas duas situações, o risco de sofrer hostilidades é maior.
Kelvin diz que nunca foi agredido no exercício da profissão, mas ouviu relatos de diversos colegas que foram ameaçados até por clientes furiosos. Para Kelvin Clay, a estratégia para sair ileso e evitar brigas desnecessárias na entrega de um produto é nunca ultrapassar os limites legais para não “perder a razão”.
“Eu sei onde está o meu direito e o meu dever [como entregador]. Se a pessoa fizer algo comigo, saberei o que posso fazer ou não. Eu não vou perder a linha mesmo sabendo dos casos [de agressão e ameaça] que já aconteceram”, afirmou.
De acordo com Souza, a maioria dos entregadores não caminha mais da portaria até o apartamento ou casa do cliente, como era comum no início da pandemia da Covid-19. A entrada com a moto não é permitida em residenciais, por exemplo. Mas essa mudança de atitude é o estopim para muitas discussões.
“Um dia o entregador cai na real e pensa: ‘Eu não estou ganhando por isso, pelo esgotamento extra’. A maioria dos condomínios é cadastrada na portaria. Você entra a pé e dá uma ‘pernada’ de mais de 200 metros e bem mais que isso às vezes. Durante a pandemia, a gente recebia gorjeta e incentivos. Passou isso [o período de isolamento social da pandemia], acabou as gorjetas porque as pessoas entenderam que isso seria uma obrigação nossa”, diz o motoboy.
Kelvin Clay lembra que uma vez sofreu coação de uma delegada da Polícia Federal em um condomínio no bairro Ponta Negra, zona oeste de Manaus, por se recusar a entregar o pedido no apartamento dela.
“Ela me disse: ‘Você sabe quem eu sou? Sou delegada federal’. Eu respondi: ‘Bacana! Mas a senhora vem pegar [na portaria] seu pedido assim mesmo. Ela não foi pegar, voltei com o pedido e vida que segue. Eu sou um cara que não gosta de brigar”, declarou.
E caso o cliente resolva agredir, coagir ou ameaçar um entregador, a principal orientação é filmar tudo para posteriormente fazer um boletim de ocorrência na polícia e ter respaldo jurídico.
“Se tiver uma confusão, a partir de hoje o celular é uma ferramenta importante. Então, é preciso filmar, porque se o entregador for agredido, vai poder chamar a polícia para identificar o agressor pelas imagens e o conduzir para a delegacia”, orientou.
As plataformas de delivery, ainda conforme o motoboy, prestam amparo somente para acidentes no trânsito. Os estabelecimentos com serviço independente de entrega não fornecem assistência para entregadores vítimas de violência e nem acidentes. A prevenção é não revidar quando atacado pelo cliente, de acordo com Souza.
“Se você for ofendido, ameaçado ou agredido, você está por conta própria. É só você, seu amigo e o advogado que conhecer”, revelou.
Sobrecarga e assaltos
O motoboy Antônio Flávio Ribeiro, 30, trabalha há sete anos para os aplicativos de delivery e estabelecimentos. Ele lidera os grupos ‘Família Motoboys’, com 260 membros, e ‘Motoboys Manaus’, com 613 profissionais.
Ribeiro afirma que não sofreu agressão de clientes até hoje, mas aguentou a hostilidade de alguns. O mantra dele é “sempre manter a calma e não se estressar com o cliente”.
“Precisa estar com o celular carregado e pronto para filmar porque você grava as situações chatas de agressões, de ameaças e de racismo, que sofremos muito na nossa classe. Teve um dia desses que o motoboy foi fazer entrega e a mulher o chamou de ‘preto’ e ‘macaco’. Então, tem muito racismo e humilhação”, afirmou Antônio Flávio, que pilota a moto com uma câmera GoPro acoplada no capacete.
A sobrecarga no delivery é outro problema, conforme Ribeiro. Geralmente, entregadores levam mais de um pedido e precisam ser ágeis na rota para evitar reclamações. O problema é que, no caso dos condomínios com portaria, o “tempo perdido” em uma entrega atrasa o restante do itinerário.
“Você pode até sair com apenas um pedido, mas precisa fazer aquela entrega rápida para já pegar outro pedido liberado pelo aplicativo. Se for trabalhar para um estabelecimento, complica mais. Você precisa ser rápido também porque o patrão tem outros pedidos [na fila de entrega] e começa uma pressão maior”, disse.
O motoboy alertou também sobre um golpe aplicado por criminosos contra os entregadores. Recentemente, um colega de profissão dele morreu após ser baleado durante um assalto na zona leste de Manaus. “Tem bandidos que se passam por clientes, fazem o pedido ou chamam pelo aplicativo [de delivery] e quando o entregador chega no endereço anunciam o assalto”, explicou.
Ribeiro afirmou que tem muitos casos de assaltantes que se disfarçam de mototaxistas e entregadores para cometer roubos. Na maioria das vezes, o bandido é acompanhado de um comparsa na garupa da moto.
Futura associação
Motoboys de Manaus planejam fundar uma associação para representar legalmente a categoria, defender seus direitos e fornecer assistência jurídica. Isso segundo os líderes de grupos de entregadores Kelvin Clay e Antônio Flávio.
Para saírem da invisibilidade, os profissionais de delivery geralmente organizam manifestações para chamar a atenção da população. Também buscam o poder público para reivindicar melhores condições de trabalho.
Em relação aos casos de violência física e verbal contra os entregadores, a categoria realiza “buzinaços” nas ruas para ganhar repercussão na mídia. Tudo sem depredar e obstruir as vias para não serem penalizados pela lei e nem criticados pela opinião pública.
E mesmo que o trabalho de entregador vire uma profissão de risco, a rentabilidade pode ser maior que a de um emprego formal, segundo Kelvin Clay. “Eu pude perceber que [como entregador] a gente ganha mais dinheiro do que às vezes em um emprego com salário fixo. Porque quanto mais você trabalha [em delivery], mais você recebe”, explicou.