Que os povos indígenas viviam nas terras invadidas pelos colonizadores portugueses em 22 de abril de 1500, todos sabemos. Que os milhares de africanos traficados para o Brasil na condição de escravos fizeram a economia cafeeira e açucareira deste país entre os séculos XVI e IXX, é fato. Que estes povos mereçam desaparecer por sua condição indígena e negra/quilombola, é inadmissível.
Entretanto, a morte anunciada, que já rondava indígenas e negros no Brasil desde o início da crise da pandemia do coronavírus, foi decretada e Publicada no Diário Oficial da União no dia de ontem (07 de julho de 2020).
A Lei nº 14.021, de 7 de julho de 2020, que “dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19; e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte de recursos adicionais nas situações emergenciais e de calamidade pública” (http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.021-de-7-de-julho-de-2020-265632745#:~:text=Art.%204%C2%BA%20Fica%20criado%20o,tratamento%20e%20a%20recupera%C3%A7%C3%A3o%20dos). É na verdade, um decreto de morte aos povos indígenas e quilombolas.
É verdade que o enunciado da Lei nº 14.021 aponta a “criação de medidas de proteção a povos indígenas durante a pandemia do coronavírus” e se estende “às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais” do Brasil, concentrados principalmente na Amazônia. Seria uma lei importantíssima, uma vez que os povos indígenas e quilombolas aparecem como os grupos mais vulneráveis ao novo corona vírus com altíssimas taxas de mortandade entre contaminados.
No entanto, mesmo a nova lei reconhecendo que os povos indígenas, comunidades quilombolas e povos tradicionais são “grupo em extrema situação de vulnerabilidade e que, por isso, têm alto risco de contaminação”, os vetos à sua redação aprovada anteriormente pelo Senado na sua íntegra, revelam que não se trata de uma lei de defesa dos povos em questão, pelo contrário, os vetos revelam um decreto de morte anunciada a estes povos que forma mais da metade da população brasileira.
Na sua origem, o “Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas, coordenado pela União, para assegurar o acesso às ações e aos serviços de prevenção e tratamento da Covid-19” previa, dentre outras questões, “acesso à água potável; distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção para comunidades indígenas; garantia de equipes multiprofissionais de saúde indígena, qualificadas e treinadas para enfrentamento da Covid-19, com disponibilização de local adequado para quarentena, bem como acesso a equipamentos de proteção individual (EPIs); disponibilização de testes de identificação do vírus (rápidos e RT-PCRs), medicamentos e equipamentos médicos adequados para o combate ao Covid-19; estrutura para o atendimento aos povos, como, por exemplo: oferta emergencial de leitos e ventiladores; acesso a ambulâncias para transporte fluvial, terrestre ou aéreo; construção emergencial de hospitais de campanha em municípios próximos a aldeias com maiores casos de contaminação pelo coronavírus; distribuição de materiais informativos sobre sintomas da Covid-19; pontos de internet nas aldeias para viabilizar acesso à informação; garantia de financiamento e construção de casas de campanha para o isolamento de indígenas nas comunidades”.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), “o país somava 10,3 mil casos confirmados de coronavírus entre indígenas e 408 mortes no último dia 2. Os números são maiores que os contabilizados no dia anterior, 1º de julho, pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde: 6,8 mil casos e 158 mortes listadas no site da secretaria” (https://covid19.socioambiental.org/?gclid=EAIaIQobChMIhvb9g-O96gIVSAiICR29UwzvEAAYASAAEgJCLvD_BwE).
Soma-se a estas cifras uma quantidade imensa de indígenas mortos nas periferias das cidades da Amazônia, subnotificados pelos órgãos de controle encarregados de tipificar os óbitos por covid-19.
O Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas, coordenado pela União, para assegurar o acesso às ações e aos serviços de prevenção e tratamento da Covid-19, votado e aprovado no Senado Federal previa “que nenhum atendimento da rede pública seja negado por falta de documentação ou outros motivos”; e ainda, determinava que o atendimento aos indígenas que não vivem em comunidades ou aldeias fosse realizado “por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), com as devidas adaptações na estrutura, “respeitando as especificidades culturais e sociais dos povos”. Mas, na sua publicação o senhor Presidente da República, promulga a Lei nº 14.021 com alterações substanciais que exime o Estado Nacional Brasileiro de suas responsabilidades na relação de proteção e garantia da saúde dos povos em questão. Dentre os vetos se destacam:
1. A garantia de acesso universal à água potável. Isso ocorre num contexto em que as águas dos rios que servem a maioria dos povos indígenas encontram-se bastante contaminadas pelas grandes mineradoras ou pelos garimpos clandestinos. Sem acesso à água ou aos meios para torná-la potável, os índios estão adoecendo e sua imunidade não consegue lidar com o novo coronavírus que continua se espalhando numa rápida velocidade por todas as Terras Indígenas da Amazônia.
2. A distribuição gratuita de materiais de higiene e limpeza para desinfecção de aldeias e comunidades. Acesso a sabão, cloro e álcool seria fundamental para lidar com o ataque do vírus. São itens que fogem ao manejo cultural das etnopráticas indígenas. Eles não contam com matéria prima para produzir estes itens essenciais ao combate do coronavírus que é uma doença que chega a eles pelos “brancos”.
3. Foi vetada a garantia de atendimento de média e alta complexidade diferenciada para indígena com: oferta emergencial de leitos hospitalares e UTI; aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea. Com isso, muitos indígenas sequer saem das suas aldeias em busca de atendimento médico.
4. Vetada elaboração e distribuição de materiais em formatos e línguas diversas para prevenção da covid-19. O acesso à informação é fundamental no enfrentamento a esta nova doença. Sem informação, os riscos de contaminação aumentam e, por conseguinte, as mortes.
5. Vetou-se a criação, em 10 dias, de plano de contingência para cada povo isolado ou de recente contato reconhecido pela Funai, para enfrentamento de surtos e pandemia. Com isso, as áreas onde se encontram estes grupos continua sofrendo invasões permanentes de missionários proselitistas fanáticos, de militares, de madeireiros e garimpeiros genocidas.
6. Os povos Quilombolas e demais comunidades e povos tradicionais foram excluídos da implementação do Plano Emergencial para enfrentamento da COVID-19, bem como seu direito de utilização de recursos da União e do fundo específico para o enfrentamento da COVID-19 nas medidas de saúde, proteção territorial e sanitária, ampliação emergencial do apoio por profissionais de saúde, testagem rápida para casos suspeitos de covid-19 que foram aprovadas na lei. Sem estes recursos, grupos humanos inteiros ficam à margem da sociedade num decreto claro de genocídio planejado oficialmente pela necropolítica do planalto.
Estes e outros vetos ao Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas e quilombolas, revelam um decreto de morte aos povos indígenas e quilombolas como se estes não fossem sujeitos de direitos.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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