Fui lá ver e confesso que não gostei do que vi. É claro que a restauração do Mercado Municipal Adolpho Lisboa merece aplausos, como qualquer outra obra que traga de volta o passado, com a valorização do tão maltratado centro histórico de Manaus. O prédio e seu conjunto, em seus aspectos externos, retornaram às suas configurações originais, embora com algumas mudanças que jamais estiveram presentes quando de sua inauguração, em 1883. Nem mais tarde, em sua ampliação, com a construção dos galpões laterais e do chamado Pavilhão das Tartarugas, nos anos que vão de 1890 a 1908.
A propósito do reencontro da cidade com suas assinaladas características, guardo comigo há muito tempo um projeto de recomposição de seu sítio mais central. Já escrevi vários artigos sobre a questão e cheguei a discuti-la com o governador Gilberto Mestrinho, logo entusiasmado com a iniciativa, quando de uma viagem que fizemos a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Com recursos que poderiam ser obtidos em organismos internacionais, a fundo perdido, recomporíamos a face antiga da cidade, o seu gracioso e belo rosto. Recolocaríamos a pavimentação das ruas com paralelos portugueses e suas calçadas laterais com pedras de cantaria, com distribuição de energia e iluminação em linhas subterrâneas. Teríamos o retorno dos bondes, que circulariam com ar condicionado num quadrilátero formado de início pela Ramos Ferreira até a Manaus Moderna e entre as avenidas Epaminondas e Joaquim Nabuco, em área a ser interditada ao trânsito de outros veículos, com a construção de estacionamentos circundantes. Restabeleceríamos as fachadas do casario que merecessem e tivessem real interesse histórico, ainda existentes, encobertas com perfis de alumínio de muito mal gosto, da época da Zona Franca comercial. No local, que agasalha as edificações mais importantes da urbe, estimularíamos o desenvolvimento do setor de serviços, com incentivos especiais à implantação de agências bancárias, hotéis, pousadas e pensões, restaurantes e bares com cadeiras nas calçadas, escritórios de profissionais liberais e outros projetos de igual natureza.
Bem, águas vencidas pela insensibilidade, voltemos ao nosso Mercadão. Antes, aproveito, como ato de justiça, para reconhecer o trabalho do secretário de Cultura Robério Braga, que sem dúvida tem promovido ações efetivas em defesa do patrimônio da cidade, constituindo-se em rara exceção nesse mar de indiferença em relação à nossa história. Como observei lá em cima, não me agradou a nova composição já inaugurada. Não encontrei nela o velho Mercado, nem seus cheiros e sabores tradicionais. Em suas paredes e dependências não identifiquei mais a experiência dos nossos melhores anos, dos tempos em que lá terminávamos a noite, em madrugadas encantadas. Nas longas mesas de seus restaurantes regionais, com suas memoráveis caldeiradas de tambaqui e tucunaré, conseguíamos ouvir o silêncio do Rio Negro, com suas águas escuro-carameladas, que banhavam com suavidade seus alicerces e pisos frontais, em período de cheia. Nelas, discutíamos filosofia, literatura e a vida, com muita conversa estirada e sem pressa. Ali, com o sol já faiscando sobre os telhados banhados pela era, declamávamos os poetas malditos, românticos e modernistas, que sempre embalaram esperanças. Um longo desfile sintonizado com nossos sentimentos, um tapete largo que incluía Augusto dos Anjos, Castro Alves, Fernando Pessoa, Nicolás Guillén, Pablo Neruda, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, Hermeto Lima, Júlio Salusse, Bandeira, Drumond, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, Luiz Bacelar, Farias de Carvalho, Thiago de Mello e Ernesto Penafort, eleitos sempre e sem maiores variações por todos nós, uma geração boêmia de nossa mui querida cidade de São José da Barra do Rio Negro.
Com modificações suportáveis, cuido que o quadro que melhor tipificou o Mercadão teria de ser conservado, imprescindível como marca para quem viveu aqueles instantes, um ambiente que nos permitisse respirar o clima de outrora. Que nos propiciasse a sensação do reencontro com as manhãs de domingo, quando lá chegávamos à procura de um bom quarto traseiro de tartaruga para o almoço celebrado em família, composto de igual modo pelo gosto pronunciado de nossas frutas caboclas.
Como disse meu amigo Paulo Macedo, em sua página do Facebook, o Mercadão “hoje pode ter outra denominação, menos de mercado. Pode ser um centro de artesanato, um local onde se admira a arquitetura e os lindos vitrais”. Observa, entretanto, que lá não encontrou mais o frenesi do passado: “falta o povo, o cheiro do tabaco de corda e do tucupi, das farinhas, do colorau e das ervas”. “Falta o apregoar dos peixeiros e açougueiros, dos carregadores e empurradores de mercadorias, falta o tropeço e o bate-bate de qualquer mercado vivo, pulsante”. “Falta vida, no que foi o nosso Mercadão”, conclui Macedo, com alguma melancolia.