O artigo de hoje é uma resposta ao pedido de leitores assíduos do Portal de Notícias Amazônia Atual, que solicitaram, através de e-mail, que a coluna de hoje fosse dedicada a duas grandes figuras da Amazônia: Cláudio Perani e Pedro Casaldáliga.
Em comum, as duas personagens escolheram o mesmo dia para “atravessar o rio”, como dizemos carinhosamente na Amazônia numa referência ao dia da morte. No dia 8 de agosto, o sacerdote jesuíta Cláudio Perani completava 12 anos de sua “travessia”. Na manhã deste mesmo dia o bispo émerito (aposentado) Dom Pedro Casaldáliga “atravessou o rio Araguaia”. Na manhã de hoje (12 de agosto), seu corpo foi sepultado, ou melhor, “semeado”, como acreditam alguns povos indígenas, no Cemitério Iny (Karajá) à beira do Rio Araguaia, em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso.
Além de escolherem a mesma data para “atravessar o rio”, ambos foram autênticos defensores da Amazônia e de seus povos. Cláudio Perani acreditava na organização popular como uma verdadeira ferramenta política de libertação. Dizia que para conhecer a Amazônia e seus povos, era preciso “andar pelas florestas, navegar os rios, visitar as casas das famílias indígenas, ribeirinhas, migrantes e empobrecidos nas periferias das grandes cidades da Amazônia e escutar o que o povo tem a falar, porque eles têm as respostas da transformação”.
Num trecho do último artigo que escreveu, Cláudio Perani afirmava que “o tema sociedade civil, movimentos sociais e ONGs no Brasil é extremamente importante, atual e muito debatido na conjuntura política brasileira. De um lado, a desconfiança em relação à política partidária. Está presente no meio popular um grande pessimismo ao considerar os políticos e suas instituições. De outro lado, afirma-se facilmente que a política não muda nada, que os políticos são corruptos e visam somente seus interesses. Com isso, partidos, Congresso, Governo perdem sua importância e são valorizados outros caminhos políticos como os vários movimentos sociais e outras iniciativas da sociedade civil. São opiniões e afirmações questionáveis, evidentemente, mas que têm seu valor e refletem uma situação concreta em contínua mudança. Simplificando, podemos dizer que, em princípio, será necessário não excluir nenhum caminho político, mas procurar mudar e fortalecer tudo que possa favorecer a organização popular e seu poder”. Afirmava o padre Cláudio em junho de 2008, pouco tempo antes de sua “travessia”.
A confiança na força do povo como caminho de mudança e de profunda transformação da sociedade foi a marca registrada deste jesuíta ítalo-brasileiro, que escolheu o chão da Amazônia para ser “semeado”. Da mesma forma, o hispano-brasileiro Dom Pedro Casaldáliga, que escolheu as margens do Araguaia para ser “semeado”, apostava na organização popular, de modo especial dos povos indígenas e camponeses, como modo de superar toda forma de opressão.
Escritor e poeta, ficou conhecido mundialmente pelo seu modo simples de viver e pela coragem de suas palavras contra o latifúndio e o agronegócio que produzem injustiças sociais cometidas contra os povos indígenas e camponeses. Foi um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), organismos ligados à conferência dos Bispos do Brasil (CNBB).
As poesias de Casaldáliga falavam da América Latina como e uma pátria grande “Ameríndia” ou Abya Yala, que na língua do povo Kuna (Colômbia), significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento e é sinônimo de América. Uma das suas poesias mais conhecidas foi dedicada à Terra sem Males, numa referência ao mito do Povo Guarani, que se transformou num rito intercultural reconhecido e cantado em muitas partes do mundo. Alguns trechos da poesia:
“Eu sou América, sou o Povo da Terra, da Terra-sem-males,
o Povo dos Andes, o Povo das Selvas/Florestas, o Povo dos Pampas,
o Povo do Mar, do Colorado, de Tenochtitlan, do Machu-Pichu,
da Patagônia, do Amazonas, dos Sete Povos do Rio Grande…
Na Esperança da Terra Prometida, rejeitamos todas as cadeias e, com os pés descalços sobre esta Terra nossa, retomamos a marcha dos mortos redivivos.
Com as claras estrelas dos Povos exterminados,
iluminamos a rota do último Êxodo, buscando a Terra-sem-males.
Como fogueiras ardendo no coração da noite,
a memória dos Povos perdidos conduz o passo dos seus filhos.
Pelos Templos sem defesa saqueados,
por todas as Cidades destruídas, pelos 90 milhões de índios massacrados.
Pelas ruínas do Império do Sol, pelos Palácios Maias abolidos,
por todo o Povo Azteca escravizado, pela desolação dos Sete Povos…
Pelo silêncio das flautas e tambores na noite,
pela morte da alma destes Povos, pela palavra “resignação” dita aos escravos…
Morena de Guadalupe, Maria do Tepeyac,
congrega todos os índios na estrela do teu olhar…
Seremos nos teus Povos o Povo que ha de vir.
Os Pobres desta terra queremos inventar essa Terra-sem-males que vem cada manhã”.
Amados por muitos e odiados por outros, Perani e Casaldáliga cativaram e incomodaram muitas gente. Para muitos, suas vidas foram pura inspiração, suas palavras e escritos foram grandes ensinamentos e orientação. Para outros, foram pura provocação.
Dos dois, herdamos o testemunho de pessoas simples e cativantes, corajosas e audaciosas, carregados de ternura e de dureza toda vez que precisaram se posicionar em defesa dos injustiçados desta terra que hoje os têm como sementes que hão de render muitos frutos de libertação.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.