É implacável a assertiva do dramaturgo Bertolt Brecht sobre os paradigmas culturais: ““Infeliz a nação que precisa de heróis”, ao refletirmos sobre a necessidade da diversidade do pensamento, como premissa do espaço para diálogo e da possibilidade da contradição como fatores de dinamização da cultura, e nos deparamos com nossa dependência de mártires e heróis. Trata-se de um paradigma, muito estimulado pelas ideologias, que vai na contra mão de qualquer processo que priorize a crítica. Algo
profundamente sintomático, rigorosamente pavoroso na tradução da dinâmica cultural, religiosa e espiritualista, notadamente dos latinos, em padrões gerais e dos brasileiros, muito em particular. Uma teologia raivosa que aparece como regra em nossa história – com fundamentação profética desde os tempos bíblicos. Este imperativo se agrava, em tempos de ebulição política como o que vivemos, exacerbando a vontade das massas de eleger heróis e mártires para apimentar o script dessa ópera bufa que é a política brasileira, cuja performance e cobertura – por pay per view – é caprichosamente arquitetada por quem patrocina o elenco e sua turnê oportunista.
É urgente, portanto, disseminar a metodologia da crítica, o exercício da dúvida e o mecanismo da ironia se quisermos, de verdade, alcançar patamares de civilização libertária com uma população minimamente esclarecida, ou seja, atenta às aparências da enganação permanente.
Aqui nos deparamos com uma nova modelagem de fascismo. Uma versão brasileira da completa renúncia ao pensar, e lançar mão das faculdades cognitivas, o que deságua no embrutecimento, o distanciamento de afetos nobres. Em alguns instantes, e a luz de tantas situações estapafúrdias, não há como não dizer que o Brasil faliu. E esta crise é muito maior do que sua roupagem econômica, um buraco cíclico que persegue o modo de produção capitalista.
Um fascismo sutil, mas não menos brutal. Ninguém é louco de se declarar fascista nos dias de hoje, porque ele não é consciente, nem institucionalizado. Ele esta calcado em medos profundos no inconsciente coletivo, um reflexo da nossa civilização e de como ela se mantém. É um produto que se encaixa como uma luva num modo de vida que prega a competição desde o ensino primário e familiar, em detrimento da cooperação. Um modo que ressalta sempre as ilusões que nos separam em classes e segmentações sociais, enquanto escamoteia nossa condição geral e inegável de explorados.
Essa maneira de opressão pode ser até mais perigosa do que o fascismo tradicional, aquele em que o Estado promove a alienação e veicula sua dominação em todas as instituições sociais. É bem verdade que é só o Estado quem possui o monopólio institucional da violência, entretanto, no seu contraponto libertário, o fascismo explícito fomenta sua contrapartida, incentivando iniciativas libertárias de recomposição institucional.
O fascismo no cotidiano quer calar o sentido das manifestações criticas. Quer perder de vista a presença do não idêntico para ver se assim ganha uma sensação de segurança. O fascismo é o gesto bruto que quer impor o não ver. Ele deseja a manutenção da própria cegueira e surdez. O Brasil está entre os países que mais lincham no mundo. Nos últimos 60 anos, mais de um milhão de brasileiros participou de ações de justiçamento de rua, de acordo com o sociólogo José de Souza Martins, estudioso das raízes profundas dessa antiga prática, verdadeiro ritual de loucura coletiva. Se um grupo de pessoas agride um suposta criminoso, isso não significa a eliminação do crime, mas a fabricação de novos criminosos. O arquétipo dos mártires e dos heróis em cada um deles empurra a todos para esta vilania. Isso se manifesta no comportamento de uma adolescente que se incomoda com a presença de um mendigo diante de uma vitrine. Ela amaldiçoa a mendicância e só almeja que ela saia de sua presença. Um gerente de empresas que, depois do trabalho, bate panela na varanda de seu apartamento, na hora do discurso de um político, não quer saber, nem pensar sobre o fato. Ele só deseja que o discurso seja silenciado. Isso se repete nas passeatas, com a polícia, nas empresas, na internet, nas famílias, em instituições, em espaços públicos ou privados, em nome da surdez coletiva, porque temos mártires e heróis – ou vilões depressivos – dentro de nós.
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