Por Walter Porto, da Folhapress
SÃO PAULO – “Então Ci enrolando os braços e as pernas nas varandas da rede numa reviravolta ficava esfregando o chão. Macunaíma vinha por debaixo, enganchava os pés nos pés da companheira, as mãos nas mãos e se erguendo do chão com esforço, principiavam brincando assim. Dava uma angústia de proibição esse jeito de brincar”.
A “angústia de proibição” nessa cena de sexo do clássico “Macunaíma” era tanta que o próprio Mário de Andrade decidiu se censurar. O trecho acima foi cortado da edição seguinte do livro, depois de um diálogo aflito do autor com Manuel Bandeira.
Mário afirma ao amigo poeta que aquelas páginas com extensas descrições de safadezas, em que o protagonista se diverte inventando posições sexuais com a parceira, “ficaram engraçadas, não tem dúvida, porém já me arrependo”. “Estou convencido que exagerei. Devia ter sido mais discreto”, lamenta o modernista.
É curioso que um autor que libertou o Brasil de tantas tradições tenha essa ambiguidade tão forte em relação ao erotismo. Ainda mais porque sexo era um assunto no qual Mário se esbaldava com tremenda diversão, conforme diz a crítica literária Eliane Robert Moraes, que fala na Feira do Livro no Pacaembu neste sábado.
“Era difícil para um homem que queria intervir num ambiente cultural conservador como aquele, no Brasil dos anos 1920, tratar da matéria pornográfica”, diz a pesquisadora, conhecida pela eloquência professoral com que trata da literatura “do baixo corporal”, como nesta entrevista feita na Biblioteca Mário de Andrade.
“Mas Mário tinha uma estratégia. A obra dele tem uma contenção lexical, é raro usar palavras pesadas, mas ele deita e rola na literatura popular, que sempre falou tudo com todas as letras”.
Sabemos que às vezes os textos mais sujos são os que não usam nenhuma palavra escandalosa, como reforça a professora da Universidade de São Paulo, que talvez seja a maior conhecedora da relação da literatura com a sexualidade no Brasil.
Moraes já havia mapeado poemas numa “Antologia da Poesia Erótica Brasileira” e contos em “O Corpo Descoberto” – este, prestes a ganhar um segundo volume, “O Corpo Desvelado”, pelo selo do Suplemento Pernambuco. Agora, ela se debruça sobre o pai da “Pauliceia Desvairada” num livro que revela muito do que ele tendeu a esconder.
Por exemplo, os trechos suprimidos de “Macunaíma”. Ci “buscava no mato a folhagem de fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói e na nalachítchi dela”, diz outra parte do texto. “E os dois brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso”.
“Tento mostrar como Mário foi inventando mil formas de falar aquilo que ele não podia”, aponta a crítica literária. “O tiro do moralismo sai pela culatra. Ele inventa tanto jeito de falar sobre o interdito que o objeto sexo está sempre ali palpitando”.
Isso não aparece só em trechos que acabaram censurados, mas no grosso da obra publicada pelo modernista. A “Seleta Erótica” de Mário que a professora lança agora tem mais de 200 páginas de variadas “safadagens”.
Repare neste trecho de “O Carnaval Carioca” -“Pão e circo!/ Roma imperial se escarrapacha no anfiteatro da avenida./ Os bandidos passam coloridos,/ Gesticulam virgens,/ Semivirgens,/ Virgens em todas as frações/ Num desespero de gozar”.
Ou nos versos sensuais deste poema contido em “Losango Cáqui” -“Cabo Machado é moço bem bonito./ É como se a madrugada andasse na minha frente./ Entreabre a boca encarnada num sorriso perpétuo/ Adonde alumia o sol de ouro dos dentes/ Obturados com um luxo oriental”.
Ou, em “O Turista Aprendiz”, o relato de suas visitas a povos indígenas -“Já os rapazes, porém, se floriam sem a menor sexualidade. Preferiam uma espécie de lírio sarapintado de roxo e amarelo que dava na beira dos brejos e tinha uma haste muito fina e comprida. Cortavam a flor com haste e tudo e a enfiavam no… no assento -o que lhes dava um certo ar meditabundo”.
Segundo Eliane Robert Moraes, a atração de Mário por homens é palpável em sua literatura, já que as passagens que pulsam de tesão mais carnal nunca envolvem mulheres. Ela é peremptória ao definir o escritor como gay, não bissexual.
“Em gerações mais antigas, quase todo homossexual foi bissexual, porque foi criado para ser hétero. Meus amigos gays todos transaram com mulher”, aponta a escritora de 70 anos. “Dizer que a pessoa é bissexual por causa dessas histórias é deformar”.
Essa iniciação dos homens jovens da época com prostitutas é o próprio tema de “Amar, Verbo Intransitivo”. “Mas aquelas Marias de que ele fala são todas muito etéreas, sem corpo”.
Como a autora escreve no prefácio do livro, é essencial rejeitar interpretações que ocultem “o corpo, os trejeitos e a orientação sexual” do escritor ao mesmo tempo que se mantém em mente a distinção entre “a sexualidade de Mário e o erotismo em Mário”.
O pesquisador César Braga-Pinto, amigo e referência bibliográfica de Moraes, tem um longo artigo no recente volume “Modernismos 1922-2022” sobre o desconforto que identifica nas leituras predominantes sobre Mário.
“A crítica tem abordado o xis da sexualidade em (e de) Mário de forma mais ou menos homofóbica, às vezes com cuidado, às vezes com constrangimento, outras com dissimulação e, não raro, em gestos de desqualificação ou obliteração”.
A bibliografia sobre o escritor, como um todo, apagou a maior parte do que se referia a sua latência sexual, afirma Moraes. “Mário foi bem limpo. Ele se tornou um grande pensador do Brasil, e justamente, mas o sexo foi tirado dali”.
É saudável que hoje se observe o movimento inverso. É evidente, afinal, como o pensamento erótico serve de potência para a criatividade.
Ou, citando diretamente aquele trecho censurado em que Mário surpreende Macunaíma transando com Ci, “brincavam assim”. “E agora, despertados inteiramente pelo gozo, inventavam artes novas de brincar”.
Seleta erótica de Mário de Andrade
Quando Lançamento em evento na Feira do Livro em São Paulo neste sábado, às 15h
Preço R$ 99 (320 págs.)
Autor Org. Eliane Robert Moraes
Editora Ubu