Onde estão os negros no Amazonas?
Adoto a definição do autor Pierre Nora para indicar que os lugares de memória são uma construção histórica, uma vontade de memória.
Eles auxiliam a revelar processos, interesses, vivências, e possuem valor como documentos. Esses lugares não são lugares naturais, mas são revestidos de uma carga de memória, e analisar esse revestimento e essa carga faz parte dos meus interesses de pesquisa para um tema muito específico: os lugares de memória e consciência. Aqui não apenas o lugar onde ocorreu o fato, mas o que aconteceu nesse lugar depois do fato, por quais transformações passou e se restaram camadas de materialidade dessa memória, por quais pressupostos, interesses e motivações. Além da necessária reparação simbólica feita aos que foram vitimados com o tráfico transatlântico, com a escravidão no solo brasileiro.
É importante concentrar ainda mais estudos e análises sobre a dimensão humana do que foi a escravidão no Brasil por duas questões mais diretas: contribuir para um debate concreto sobre reparação histórica multifacetada, que abrange desde políticas afirmativas e permeia os campos da memória e da justiça. Tratar sobre esses lugares pode não ser uma ação direta de reparação dos sujeitos, mas é um importante reconhecimento sobre a violência da escravidão do ontem nos espaços e nos debates públicos do hoje. E segundo, nos deixa alertas sobre os atuais processos similares de redefinições territoriais que tem como consequências o apagamento não somente de lugares e memórias, mas também definem no presente quem é desejável como presença e como símbolo de determinados espaços na cidade.
Cabe lembrar um dos últimos fatos com relação a essa invisibilidade negra no Amazonas. Muitas pessoas afirmam sem maiores constrangimentos que a população negra na cidade de Manaus só “aparece” ou “cresce grandemente” a partir da chegada dos imigrantes haitianos, refugiados do grande terremoto de 2010, quando em grandes levas chegavam a Manaus, lotando as instalações da igreja São Geraldo, na Avenida Constantino Nery, ou circulando a pé aos pares ou grupos atrás de empregos com as indefectíveis pastas com documentos e currículos. Ocorre que no período de 2010 a 2014 entraram no Brasil, cerca de 34 mil haitianos, desses 20% (6.800) direto de port-au-prince para o sudeste do Brasil, 75% entraram pelas fronteiras do norte (Tabatinga-AM ou Brasileia-AC). Pelas facilidades para entrar e seguir por terra, a maioria entra por Brasileia-AC. Até meados de 2013, mais de 10 mil haviam passado por lá, sendo a rota preferida o número triplicou desde 2010 , o que deixaria como saldo máximo para a entrada por Tabatinga – Manaus de cerca de 17 mil ao longo de quatro anos. Sabe-se que hoje, embora estejam em 286 cidades brasileiras, 75% dos haitianos estão concentrados em São Paulo, em torno de 10% em Manaus (ou seja 3.400) e 7% (cerca de 3 mil) em Minas Gerais.
De acordo com o relatório do IBGE de 2007, em 2000, a Região Norte possuía uma população de 12,9 milhões de habitantes, dos quais 3,6 milhões se classificaram como brancos (28,0%), 641 mil como pretos (5,0%), 29 mil como amarelos (0,2%), 8,3 milhões como pardos (64,0%) e 213 mil indígenas (1,7%) (lembrando que nem estamos entrando na questão dos “pardos” que na região norte tem a especificidade de não ser majoritariamente de origem africana, mas indígena).
A questão é: como é que notaram os talvez 17 mil haitianos que passaram por Manaus e os 3,4 mil que ficaram por aqui, mas não perceberam os 87.334 pretos brasileiros, que já estavam por aqui pelo Amazonas de acordo com o Censo de 2000, ou os 143.888 de acordo com o censo de 2010 ????; Por outro lado ninguém tem dúvidas em colocar o Amazonas como “estado indígena” pelos 168.624 indígenas apurados no mesmo censo (uma diferença + + 0,7% pontos percentuais em relação a de pretos), mas insistem sistematicamente na negação da presença negra ou na sua “alienigezação”, mas (BLUMER, 1939) explica bem isso:
Os quatro tipos de sentimentos sempre presentes no preconceito racial:
Um sentimento de superioridade; Um sentimento de que a raça subordinada é intrinsecamente diferente e alienígena; Um sentimento de monopólio sobre certas vantagens e privilégios; Medo ou suspeita de que a raça subordinada deseja partilhar as prerrogativas da raça dominante. Pelo resultado das ações práticas, se explica e podem-se identificar os verdadeiros sentimentos que motivam a histórica invisibilização negra no Amazonas.
A certificação do Barranco de São Benedito como o segundo quilombo urbano do Brasil completou três anos em 2017
Mas a história de luta e resistência dos moradores descendentes de escravos do Maranhão, que vivem na comunidade localizada na Praça 14 de Janeiro, zona sul de Manaus, já é centenária. Moradores dizem ter “muito orgulho” de viver. Uma das moradoras mais antigas do quilombo, Deusdeth Fonseca Lima, de 88 anos, conta que apesar das dificuldades da vida, o orgulho por ser negra prevalece, por ter uma história de superação no local. “A coisa boa é lembrar da minha infância, que embora pobre, fui muito feliz de ouvir meus pais contarem como se conheceram e chegaram aqui em Manaus, ambos são do Maranhão e filhos de escravos”
Deusdete é conhecida por toda a comunidade. Ela é, carinhosamente, chamada de Tia Deca. “A Praça 14 é minha casa. Foi aqui que eu nasci, passei minha infância e adolescência e hoje passo minha terceira idade. Ser negra é um orgulho principalmente devido à história de geração em geração, que foi uma superação”.
A Praça 14 de Janeiro é um importante bairro da zona sul de Manaus. Comemorou este ano os seus 118 anos de existência; o nome é em decorrência de uma revolução popular contra o atraso no pagamento do funcionalismo público e fornecedores, bem como, pela falta de assistência social aos habitantes. O alvo foi o governo de Gregório Thaumaturgo de Azevedo, em 14 de janeiro de 1892.
O movimento foi liderado por Almino Álvares Afonso, Lima Bacuri e Leonardo Malcher. O governo renunciou, assumindo o Eduardo Ribeiro. O local era chamado de Praça da Conciliação, depois passou a se chamar Praça Fernandes Pimenta e no mesmo ano passou ao nome atual. No ano de 1940, a colônia portuguesa solicitou à Câmara Municipal de Manaus a troca do nome do lugar para Praça Portugal, mas a solicitação não foi aceita pelos vereadores, a pedido dos habitantes da comunidade.
O bairro é muito rico em cultura: Ciranda da Viscondessa (Rua Visconde de Porto Alegre), Tribo dos Andiras (Rua Jonathas Pedrosa), Dança do Tipiti (Colégio 1º. De Maio), Boi Caprichoso (criado por dois irmãos, um dele desceu o Rio Amazonas, parando em Parintins onde criou o Caprichoso de lá) e a Escola de Samba Mista da Praça 14, fundada em 1947 por Raimundo Brito, Fernando Medeiros, Tia Lindoca, Tia Lurdinha e Zé Ruindade. Encontramos no bairro muitas rezadeiras e parteiras, além de muitos devotos da Nossa Senhora de Fátima.
Donos de uma tradição incomparável no samba, passando pelos folguedos populares como o bumba-meu-boi, pastorinhas e outros, além dos festejos à São Benedito, a Praça 14 de Janeiro tem, em sua essência, inúmeras manifestações representativas da cultura afro-brasileira. Descendentes de ex-escravos vindos do Maranhão, estas pessoas guardam em suas expressões e gestos típicos uma história de lutas e de tradições que se reinventam continuamente em coletividade, passando de geração à geração o compromisso de levar em frente os costumes e crenças da comunidade, sempre vivos nas memórias dos mais velhos. Neste bairro, os homens são chamados de mestres pela sua importância e as mulheres são carinhosamente saudadas como tias por aqueles que visitam ou moram na Praça 14.
Em 1º de dezembro de 1975 foi fundada o Grêmio Recreativo Escola de Samba Vitória Régia, na Rua Emilio Moreira, nº 1192, Raimunda Dolores Gonçalves (Tia Lindoca), juntamente com Nedson Pires de Medeiros (Neném), Roberto Cambola e Darcy Sérgio de Souza (Barriga) assinaram a ata de fundação da Escola de Samba. Adotaram as cores verde e rosa, tendo com madrinha a Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro. Não é à toa que chamamos a Praça 14 de Janeiro, de “O Berço do Samba e de Revolta Populares” onde o batuqueiro bate forte de janeiro a janeiro, como diz o refrão de um de seus mais conhecidos sambas de concentração.