A história de Manaus demonstra através de inúmeros fatos a presença de uma forte aversão à natureza, que tem desembocado em ações prejudicais contra a fauna, a flora e outras riquezas naturais, impactando negativamente a qualidade de vida das populações, principalmente as mais pobres.
Esta hostilidade contra a natureza já pode ser vista na época do boom da borracha (1850 – 1912), quando se tentou reconfigurar a cidade, transformando-a num entreposto de exportação do látex proveniente do interior das florestas e dos seringais espalhados pela Amazônia. Nesta época, projetou-se construir uma cidade europeizada, buscando-se eliminar todos os vestígios da natureza, em nome da modernidade. A Cidade e a Natureza eram vistas como sujeitos antagônicos. À medida que a cidade era remodelada os elementos naturais desapareciam para dar espaço ao ambiente construído, buscando criar um lugar artificial, distante de suas raízes amazônicas e tropicais.
Sob a égide do sistema extrativista agroexportador, a transformação econômica, cultural e espacial de Manaus obedecia à lógica da acumulação capitalista, respondendo às pressões e determinações provenientes do mercado internacional. Visava-se projetar para o mundo a imagem de uma cidade moderna e civilizada, portadora de hábitos sociais sintonizados com os padrões vigentes no mundo europeu. Tratava-se de construir uma cidade atraente e confortável, que apresentasse condições propícias para a realização de negócios e a instauração de moradias para pessoas das mais diversas nacionalidades (DIAS, 2007).
A reconfiguração da cidade, como capital da borracha, levada a termo pelo poder público, aliado aos interesses privados, significou a implementação de uma política de pressão, exclusão e dominação contra as pessoas ou grupos de pessoas que emergiam na cidade e que não se enquadravam nos conceitos de valores da elite local. Buscava-se projetar a imagem de uma cidade limpa, ordeira e sem problemas, sendo necessário desenvolver uma politica de preservação e defesa da ordem urbana e, na medida em que os valores eram afrontados, cabiam providências de excluir do espaço público os pobres, desocupados, doentes, pedintes, prostitutas, vadios, etc.
Esta aversão à natureza pode ser observada com evidência no tratamento dado aos igarapés da cidade. Estes cursos naturais d’água, que caracterizam Manaus, sempre foram considerados inimigos da modernidade, sofrendo processos de aterramento e assoreamento. Com a criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), a migração sem planejamento continuou o processo de destruição dos igarapés. O crescimento desordenado da cidade obrigou os recém-chegados a construir suas casas sobre os espelhos d’água e igarapés, enquanto usufruam de baixos níveis de qualidade de vida.
Em julho de 2000, a privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, realizada com a promessa de elevar os níveis de atendimento do saneamento básico, não cumpre com as metas estabelecidas no contrato original de concessão. A empresa Águas de Manaus, atual responsável pela gestão dos serviços de água e esgoto, lança nos igarapés e rios locais os esgotos da cidade, demonstrando aversão por estes fenômenos naturais, tão caros à identidade manauara e amazônica.
Este processo destrutivo não pode ser atribuído somente à falta de educação ambiental. A transformação dos igarapés e rios em depósitos de lixo e dejetos, expressa a irresponsabilidade da empresa privada de água e esgoto, que tem em foco principalmente a lucratividade dos agentes financeiros nacionais e internacionais em detrimento das necessidades da população. Ademais, esta prática histórica também indica a atitude de desprezo pela natureza, materializada em políticas públicas que negligenciam os ataques à biodiversidade amazônica e estimulam a degradação deste espaço único do planeta.
Reportagens contemporâneas descrevem a relação da cidade com os igarapés, lugares onde antigamente as pessoas se refrescavam do calor de Manaus e serviam de fontes de água tanto para beber quanto para a realização dos serviços domésticos e lazer (Portal Em Tempo, 20 Jan. 2020). Atualmente, os igarapés se encontram densamente poluídos pela presença de esgotos lançados pela empresa Águas de Manaus, além de resíduos sólidos como, sapatos, plásticos, cadeiras e até colchão. Esta realidade leva irremediavelmente à conclusão de que Manaus deu as costas para estas riquezas naturais e culturais, podendo ser qualificada como “a cidade que matou os igarapés”.
É possível verificar a hostilidade de Manaus para com a natureza também em políticas que estimulam o desenvolvimento predatório, como o projeto de construção do Porto das Lajes, em plena “área do polígono do tombamento do Encontro das Águas”. Trata-se de uma iniciativa de grandes empresas de transporte, que obcecadas pelo lucro, buscam destruir um dos mais significativos fenômenos naturais da Amazônia.
A negligência em relação aos efeitos devastadores da ação do homem na natureza constitui uma das características mais marcantes do projeto de construção do Porto das Lajes. Apesar dos estudos, que demonstram os impactos negativos tanto do ponto de vista ambiental, como nos aspectos culturais e sociais, a mentalidade antiecológica (ecocida), associada à lógica capitalista da exploração, se mantém firme e insistente no intuito de abolir mais este fenômeno natural de grande relevância para as cidades de Manaus, Iranduba e Careiro da Várzea.
Outro demonstrativo da animosidade da cidade para com a natureza pode ser visualizado no processo de desflorestamento do meio urbano. Segundo estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), Manaus ocupa uma das piores posições do país quando o assunto é arborização (G1 Amazonas, 30 Jul. 2019). A capital amazonense encontra-se na antepenúltima posição do ranking das capitais brasileiras com apenas 23,90% dos domicílios em áreas urbanas ordenadas com a presença de arborização.
Em meio aos desafios impostos pelas mudanças climáticas, que colocam em perigo a manutenção da biodiversidade e da própria humanidade, é urgente que as cidades amazônicas rompam com o seu histórico de hostilidade à natureza, propondo uma nova forma de desenvolvimento e convivência com o meio ambiente e adquirindo liderança nos projetos de proteção à natureza, uma vez que isso impacta na melhoria de vida das comunidades locais.
A revitalização e proteção dos igarapés da cidade, a gestão pública e democrática dos serviços de água e esgoto, um projeto consequente de arborização e a consolidação do tombamento dos Encontros das águas são alguns dos passos imprescindíveis para que a cidade se redima do ódio e agressividade que sempre alimentou contra a natureza. É preciso que a cidade de Manaus reencontre suas raízes, abrindo-se para projetos democráticos que deem oportunidades de construção de uma convivência harmoniosa com a natureza e com o seu povo multifacetado, principalmente os setores mais pobres, residentes nas periferias, palafitas, ocupações e favelas.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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