No dia 24 de outubro a cidade de Manaus completou 352 anos de fundação, mostrando na sua história que a vida da sua população sempre foi colocada em segundo plano. No seu próprio nome, a cidade traz a lembrança de um povo indígena, os manaós, que foi exterminado para dar lugar a um modelo civilizatório predatório e opressor, indicando o desprezo pelos nativos que aqui viviam ou ainda vivem, os verdadeiros donos da terra.
Este desprezo pela vida das populações nativas apareceu ao longo de toda a história da cidade, principalmente nos períodos de grande desenvolvimento. Na era da borracha (1890 – 1920), a grande maioria da população não se beneficiou das riquezas que ela mesma produzia. Não teve a chance de experimentar o requinte da Paris dos Trópicos que esbanjava modernidade e brilho. Ao contrário, a maior parcela da população foi expulsa para fora da cidade, sobrevivendo das migalhas do desenvolvimento, que beneficiava pequenas elites locais e o mercado internacional.
A era da Zona Franca de Manaus, a partir da década de 1960, foi um projeto ditatorial, colocado em curso pelo regime da morte. Tal projeto não considerou a melhoria da qualidade de vida do conjunto da população, mas visou primeiramente solidificar um sistema social desigual, baseado na competitividade que exclui a maioria da população ou impõe sobre ela uma urbanização precária e decadente.
Atualmente, sob este regime, 53,38%% dos domicílios da cidade estão localizados em área de habitação subnormal (favelas, palafitas, ocupações e assentamentos). Nestas áreas não há nem saneamento básico, pois o regime do capital já se apropriou destes serviços para dar continuidade ao processo espoliativo. Aqui faltam escolas, transporte, comida, cultura e lazer, mas domina a fome, o desemprego, a privação, a deterioração ambiental e a ausência de serviços urbanos.
O paradigma da desigualdade que comanda a vida em Manaus foi evidenciado de forma trágica nestes tempos de pandemia, quando nos deparamos com a precariedade do sistema de saúde e a omissão dos poderes públicos diante da ação devastadora da covid-19. A crise sanitária mostra de forma inquestionável que a cidade não é projetada para o benefício de todos. Ela é projetada para excluir. Enquanto isso, as riquezas produzidas são drenadas pelos grandes empresários, que buscam incessantemente formas de explorar a população e extrair as riquezas naturais, em detrimento do meio ambiente.
Nesta época vimos que a quase totalidade da população, formada por trabalhadores, indígenas e populações negras, não tem vez nem voz. Essas vidas não interessam aos gestores e elites que conduzem a cidade, a não ser quando são transformadas em objetos de espoliação capitalista. Incontáveis são as vidas perdidas nesta longa história em nome da manutenção da desigualdade sistêmica, que torna Manaus uma cidade insustentável.
Resta-nos comemorar a fundação da cidade sobre os túmulos de milhares de pessoas que foram abatidas pela pobreza, pela violência e desigualdade estruturais, pela falta de gestores comprometidos com o bem comum, mas excessivamente alinhados a um sistema social injusto e ambientalmente predatório.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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