Em Manaus, ao longo do período da concessão privada dos serviços de água e esgoto, é comum ocorrerem reclamações sobre a falta de água, principalmente nas periferias da cidade. A precariedade do serviço de abastecimento de água, que é realizado atualmente pela concessionária Águas de Manaus, vem à tona através de diversas formas: rompimento de tubulações por falta de manutenção, perda de água no processo de distribuição, interrupção dos serviços, abastecimento descontínuo (inferior a 24 horas por dia) ou a permanente falta de abastecimento em vários bairros. Esta baixa qualidade dos serviços também pode ser visualizada nas informações divulgadas pelo Procon-Manaus, segundo o qual a concessionária ocupa o 2º lugar no ranking das empresas que mais recebem reclamações na cidade. A Comissão de Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa (CDC/Aleam) também divulga informações, chegando à mesma conclusão.
Os últimos anúncios de construção de reservatórios ao longo da cidade não deixam de provocar questionamentos, pois é de conhecimento geral que a crise hídrica na cidade não é motivada pela escassez de água, mas pela sua inadequada gestão. A falta de água em Manaus não pode ser justificada pela falta de reservatórios, pois sempre se produziu mais água potável do que aquilo que a cidade necessitou. Temos o maior reservatório de água doce do planeta. Para encontrar as razões da precariedade dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em Manaus é preciso mergulhar em águas mais profundas.
Os direitos à água e ao saneamento em Manaus são violados todos os dias. Para resolver este problema não basta recorrer à soluções exclusivamente técnicas, pois somente estaríamos tentando ofuscar uma realidade incontestável. Para equacionar este problema é necessário vislumbrá-lo como uma questão moral, política e social. Não é possível resolver um problema estrutural sem levar em consideração a sua relação com outros setores determinantes, a partir de uma visão mais complexa e abrangente. A solução só pode ser encontrada na esteira de um olhar integral sobre a realidade, onde haja a sensibilidade para identificar e enfrentar outros desafios envolvidos.
O problema da água em Manaus é imoral porque os atuais gestores públicos e a concessionária desrespeitam a dignidade humana, considerando as populações mais pobres classes inferiores e lançando-as em situações de humilhação não demonstrando o mínimo de solidariedade para com a espécie humana. É uma questão política à medida que os gestores públicos fazem clara opção pelos setores elitizados e conservadores da sociedade, representando os seus interesses em detrimento dos ideais civilizatórios que sugerem a realização de esforços no sentido de buscar uma efetiva igualdade entre todos os cidadãos. Trata-se de uma questão social porque a falta de água e a ausência de esgotamento sanitário sofrida por grande parte dos manauenses é resultado de uma gestão urbana segregadora, que trabalha para manter a cidade dividida entre ricos e pobres, implementando serviços e investimentos públicos diferenciados para cada um destes setores sociais. Esta discriminação é experimentada cotidianamente nas periferias, onde aqueles serviços são precários e o acesso à maioria dos bens coletivos é negado à população.
É notável o aprofundamento desta situação num contexto em que a gestão dos serviços públicos é transferida para a iniciativa privada. Pautando-se pela lógica competitiva do mercado, as empresas privadas ignoram as necessidades das populações mais pobres, uma vez que estas não correspondem aos seus interesses prioritários de maximização dos lucros. Estas empresas planejam investir nas áreas da cidade onde o retorno financeiro é garantido, portanto não é surpreendente que as periferias, favelas e ocupações urbanas sejam desprezadas, vivendo graves situações de privação. Neste sentido, não é novidade que a busca do lucro determina as áreas da cidade a serem mais beneficiadas pelos investimentos. São aquelas que oferecem menos riscos econômicos e garantem retornos mais rápidos e significativos. Em Manaus, é possível averiguar isso nas zonas sul, centro-sul e Ponta Negra. No que diz respeito ao abastecimento de água, ainda há um agravante: o recurso investido pela empresa provém dos cofres públicos.
Ao privatizarem os serviços de água e esgoto, os poderes públicos (Federal, Estadual e Municipal) optam, conscientemente, por um modelo de gestão urbana discriminatório, se empenhando na manutenção e acirramento da situação de desamparo vivida por grande parte da população. Esta situação assume proporções impactantes na região amazônica, onde há grande disponibilidade de água, enquanto o seu acesso é precário para expressivos setores populacionais. Trata-se de legitimar a divisão da sociedade em cidadãos de primeira e segunda classe. Recorrendo às elaborações de Jessé Souza, a privatização dos serviços públicos é resultado da vitoriosa mobilização das classes privilegiadas, que usam o aparato estatal para manterem a sociedade dividida entre cidadãos e sub-cidadãos, na maioria das vezes com o consentimento e a ajuda dos mais prejudicados. Assim, a cultura da desigualdade é consolidada e perpetuada em nosso meio.
Sandoval Alves Rocha Fez doutorado em ciências sociais pela PUC-RIO. Participa da coordenação do Fórum das Águas do Amazonas e associado ao Observatório Nacional dos Direitos a água e ao saneamento (ONDAS). É membro da Companhia de Jesus, trabalha no Intituto Amazonizar da PUC-Rio, sediado em Manaus.
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