OPINIÃO
MANAUS – O discurso de Lula no G20 de combate à fome e a pobreza no mundo foi duramente afetado pela proposta apresenta pelo governo, liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de corte de gastos.
No discurso, feito em 18 de novembro, durante a Cúpula do G20, no Rio de Janeiro, Lula disse: “O símbolo máximo na nossa tragédia coletiva é a fome e a pobreza. Convivemos com um contingente de 733 milhões de pessoas ainda subnutridas. É como se as populações de Brasil, México, Alemanha, Reino Unido, África do Sul e Canadá, somadas, estivessem passando fome. Em um mundo que produz quase 6 bilhões de toneladas de alimentos por ano, isso é inadmissível”.
A pobreza é resultado da exclusão de milhares de pessoas da economia de mercado e dos baixos salários, principalmente nos países periféricos e em desenvolvimento. Basta comparar o salário-mínimo pago na Europa com o salário-mínimo do Brasil. A França, que aparece em 10° lugar dos países com os maiores salários-mínimos do mundo, paga um mínimo de 1.767 euros mensais (aproximadamente R$ 11.132,10, considerando o euro de R$ 6,30). No Brasil, o mínimo de R$ 1.412 (representa 224,13 euros).
Esse salário-mínimo brasileiro é referência também para aposentadorias e benefícios sociais pagos pela Previdência, como o BPC (Benefício de Prestação Continuada), cujos beneficiários pessoas com deficiência e idosos a partir de 65 anos em situação de desamparo. Foram exatamente os trabalhadores assalariados e os beneficiários do BPC os maiores atingidos pelo ajuste fiscal do Governo Lula.
Sob os aplausos da grande mídia, dos jornalistas de economia e de economistas que trabalham para o mercado financeiro, o ajuste fiscal nada mais é que um arrojo para o lado mais vulnerável da sociedade para beneficiar banqueiros multimilionários e os apostadores do mercado financeiro, os chamados “rentistas” que ganham muito dinheiro sem qualquer esforço, apenas comprando títulos públicos e elevando a dívida externa e interna brasileira.
É essa classe de banqueiros e rentistas os maiores interessados no ajuste fiscal. A política, desde que Michel Temer tomou o poder de assalto, ajudado pelo Congresso Nacional, não fala em outra coisa: “É preciso equilibrar as contas públicas e fazer superávit primário.”
Superávit nada mais é que economizar para sobrar mais dinheiro para pagamento da dívida pública. O que ninguém diz (nem o jornalismo econômico nem os políticos) é que um terço do Orçamento Público da União todos os anos é destinado para esse fim: juros e amortização da dívida. E quanto mais o Brasil derrama dinheiro na goela do mercado, mas a dívida pública cresce.
Relatório do Banco Central divulgado na semana passada informa que o Brasil gastou R$ 869,3 bilhões com juros da dívida no acumulado de 12 meses até outubro. Dados de órgãos independentes, como a ONG Auditoria Cidadã, diz que o pagamento de juros e amortização da dívida supera R$ 1 trilhão em um ano. Um verdadeiro absurdo. Mas o mercado quer mais. Por isso, força o governo a editar um pacote fiscal, como o ajuste que o Congresso Nacional vota nestes dias.
Enquanto isso, o Banco Central, comandando por Roberto Campos Neto, uma cria do mercado financeiro, vem aumentando a taxa básica de juros a cada reunião do Copom (Comitê de Política Monetária). Cada 0.5 ponto percentual de aumento na taxa básica de juros significa alguns bilhões a mais no bolso de banqueiros e rentistas. É muito dinheiro saindo do caixa do governo para irrigar as contas bancárias dos tubarões do mercado, que querem sempre mais.
Os números mostram a relação entre taxa de juros e gasto com pagamento da dívida. Em outubro de 2020, o gasto oficial com pagamento de juros da dívida nos 12 meses anteriores foi de R$ 349,2 bilhões. Naquele ano, a taxa básica de juros estava em 2% ao ano. Essa taxa básica foi elevada ao patamar mais alto no final de 2022, quando as pesquisas de intenção de voto mostravam Lula com reais chances de vitória. Naquele ano, a taxa Selic terminou o ano em 13,75% e os juros da dívida consumiram R$ 586,4 bilhões. Aliás, a taxa Selic estava nesse mesmo patamar desde agosto de 2022, e se manteve sem alteração até agosto de 2023. O pagamento de juros da dívida em 2023 subiu para R$ 718,3 bilhões. E neste ano, até outubro, já acumula R$ 869,3 bilhões, com a taxa Selic em alta (12,75% desde novembro).
Para alimentar esse mercado faminto, o governo sacrifica quem não tem força de mobilização: o trabalhador e os beneficiários de programas sociais. Todos falam em contenção de gastos públicos, mas ninguém diz nada sobre reduzir a sangria de dinheiro para banqueiros e rentistas.
Lula precisava jogar limpo com a população brasileira, escancarar as informações sobre os bastidores da economia, mostrar as vísceras do mercado e dizer quem é que está “comendo” sozinho as riquezas do país produzida a duras penas por toda a sociedade. Mas o medo do mercado, que ameaça com inflação e desmantelamento da economia, tem levado Lula a ceder. Uma análise mais contida revela como Michel Temer e Jair Bolsonaro foram contemplados pelo mercado com taxas de juros generosamente baixas, e sem pressão da inflação.
Diante dos fatos, o discurso de combate à fome de Lula cai no vazio. O presidente da República precisa fazer o dever de casa para esperar uma resposta positiva dos demais países. Para isso, precisa enfrentar o mercado de verdade, não apenas com discursos velados.
O combate à fome faz eco no discurso político, mas na prática o mercado sacia a gula com o Estado refém do esquema financeiro.