Por Iolanda Ventura, da Redação
MANAUS – O linchamento de um suspeito de estupro de uma criança de 10 anos e o cerco a casal que matou o próprio filho de 3 anos em municípios do Amazonas são casos de descrença com o Estado. “Quando a população perde a esperança na capacidade do Estado de garantir a proteção, há um grande perigo à ordem social”, diz o professor Raimundo Pontes Filho, da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), e especialista em segurança pública.
Em Fonte Boa, a fúria popular se sobrepôs sobre a força do poder público para proteger suspeito de estupro que foi retirado da delegacia, assassinato, esquartejado e teve partes do corpo queimadas na rua. A polícia não conseguiu conter os moradores de Fonte Boa (a 678 quilômetros de Manaus).
Em menos de 48 horas, nesse domingo, 19, em Nova Olinda do Norte (a 135 quilômetros de Manaus), o cenário quase se repete quando a população cercou a delegacia onde um casal acusado de espancar o filho de três anos até a morte foi preso. Por motivos de segurança, foram transferidos.
Pontes Filho afirma que esse tipo de ação é resultado da descrença não só na polícia, mas na justiça criminal como um todo. “O linchamento e outras formas de justiça com as próprias mãos, o justicialismo, é um sintoma de um lado da indignação popular, dos efeitos da revolta da multidão e de outro a descrença nas instituições que deveriam passar essa sensação de segurança”, afirma.
Como consequência da incredulidade na capacidade do Estado de manter a ordem, se cria uma situação perigosa para a ordem social. “A população, quando não vê solução, ela perde a total esperança e converte essa indignação em revolta e violência. E gera esse risco de isso se tornar algo comum. E se isso acontece, aí sim teríamos um grande problema”, diz.
Segundo Pontes, os atos que resultam em justiça com as próprias mãos também são delitos, mesmo que motivados para ‘punir’ outro crime. “Eles invocam uma série de outros delitos, além do linchamento em si, ofensa à integridade ou até a própria vida das pessoas, importa também a questão do dano ao patrimônio público, de uma série de danos”, cita o especialista.
O que diz a lei?
De acordo com o professor, embora casos como os registrados em Fonte Boa e Nova Olinda do Norte revoltem a população, é preciso permitir que o sistema de justiça criminal, composto pela segurança pública (sobretudo a polícia), judiciário e o sistema prisional, atuem. “Se a gente for tentar fazer justiça com as próprias mãos, o linchamento, isso gera o irrefreável ‘efeito manada’, aquela situação em que não se pode prever o que vai acontecer e cujos danos podem ser muito maiores”, explica.
Pontes diz que é preciso fazer campanhas explicando como funcionam os trâmites para que a justiça seja aplicada. “É preciso esclarecer as pessoas para saber que a justiça se faz no tempo e não de qualquer jeito, de imediato, sem apurar responsabilidades adequadas de cada um. Nem sempre o crime é cometido apenas por uma pessoa, às vezes tiveram outros que deram apoio”, diz.
Quanto tempo?
Apesar de não ser uma justificativa, questionado sobre a relação entre tempo e justiça, Pontes Filho afirma que a demora para realizar e aplicar a justiça é uma falha que contribui para essas práticas. “Então não é um tempo a perder de vista. Isso deve ser feito num tempo razoável, o quanto antes se possível. Exatamente para evitar uma sensação de impunidade, injustiça e desordem”, diz.
Outro ponto que merece atenção é a retomada do indivíduo ao convívio social. Segundo Pontes, é preciso pesar os direitos humanos, mas também o risco que o preso representa à sociedade. “Nem todo mundo pode ser solto, ainda representa um alto risco à convivência social. Quando não se faz essa análise adequada quanto ao perfil do interno e o libera sem ter elementos mais consistentes e acaba se tornando nisso”, diz.
Para o advogado Sérgio Augusto Costa da Silva, os próprios juízes de cidades menores poderiam se aproximar da população para esclarecer como funcionam os procedimentos legais, mas isso não ocorre. “Às vezes os juízes não conseguem nem chegar até a comarca e resolvem tudo pelo computador aqui de Manaus mesmo. São coisas que teoricamente deveriam ser passadas para os cidadãos com pouca instrução, mas que na prática é muito difícil”, diz.
Sérgio Augusto critica o comportamento e diz que “mais cedo ou mais tarde vai ser feita a justiça”. “Vai ocorrer o julgamento, se for comprovada a materialidade e a autoria, essa pessoa vai ser condenada. O que a população não pode é querer fazer justiça com as próprias mãos arrancando o acusado de dentro da delegacia para o meio da rua como se a gente estivesse voltando aos tempos antigos”, diz.
Entretanto, admite que há casos que devem ser tratados com mais urgência. “Como se tratam de municípios pequenos o primeiro passo seria trazer esse tipo de delito para a capital ou município mais próximo, até para evitar que aconteça essa tragédia que aconteceu na última semana”, afirma.
Ausência do Estado
O especialista explica que o ‘olho por olho, dente por dente’ não pode ser atribuído a regiões apenas do interior do Amazonas. “Essas características podem ser ressaltadas em lugares em que há uma maior ausência do sistema de justiça”, explica.
Pontes Filho diz que o linchamento, danos ao patrimônio, justicialismo e certos tipos de execução são comuns com a ausência do poder público e a falta de esclarecimento. “Hoje, onde o Estado é mais ausente, onde as instituições são mais ausentes, esses fenômenos que são praticamente universais eles tendem a se manifestar com maior frequência”, pontua.
Desinformação
Pontes Filho define como onda de desinformação o compartilhamento sem critério de vídeos e imagens que incitam o ódio e a justiça com as próprias mãos nas redes sociais hoje. “As pessoas são muito insufladas a certas tendências e práticas sem o devido esclarecimento e orientação, através de uma avalanche de mensagens e vídeos sem critério”, afirma.
De acordo com o professor, não apenas perfis nas redes, mas qualquer programa ou mídia que divulguem conteúdo sensacionalista contribuem para disseminar a violência.