A pedido de muitos leitores e leitoras desta coluna, seguiremos aprofundando a temática da “invenção do verbo amazonizar” acrescido de outra provocação à reflexão que é o tema da internacionalização da Amazônia, tendo por referência os debates levantados durante o processo de escuta do Sínodo para a Amazônia.
De fato, o tema da internacionalização da Amazônia não é novo e, frequentemente, vem à tona. Data da década de 1980 quando nossa dívida externa atingia cifras exorbitantes e as estratégias políticas do entreguismo e da privatização pareciam ser a saída para o país sob o comando dos governos militares.
Nos frágeis processos de redemocratização iniciados em meados da década de 1980, o tema da internacionalização da Amazônia continuava em pauta em recorrentes pronunciamentos em eventos internacionais como o trecho da carta final da Reunião do Grupo dos Cem, realizada na cidade do México, em 1989 que afirmava: “Só a internacionalização pode salvar a Amazônia”.
Da mesma forma, a carta da reunião do Conselho Mundial das Igrejas Cristãs, realizada em Genebra, em 1992, afirmava que “a Amazônia é patrimônio da humanidade. A posse desse imenso território pelo Brasil, Venezuela, Colômbia, Peru e Equador é meramente circunstancial”. Dando a entender os interesses de internacionalização do território Pan-Amazônico.
Todos e todas sabemos que o interesse por trás da provocação da internacionalização da Amazônia é a apropriação dos seus recursos por instituições financeiras que querem se enriquecer às custas da destruição da Amazônia e de seus povos para explorar suas riquezas. Não existe interesse financeiro internacional em preservar o patrimônio natural e cultural da região. Muito pelo contrário.
Desde os primórdios da colonização, os povos dessa imensa região enfrentam as piores investidas internacionais sobre seu território e procuram resistir de forma coesa organizada. De maneira especial os inúmeros Povos Indígenas têm se posicionado em defesa da Amazônia e enfrentado todo tipo de violência e opressão por causa da luta em defesa da Ecologia Integral nesta grande “casa comum”.
A resistência à internacionalização da Amazônia e a defesa da soberania de seus povos se fez muito presente nos relatórios das escutas sinodais em diversos grupos e fóruns de discussão. Em praticamente todos os relatórios das escutas, desde as rodas de conversa, passando pelas Assembleias Territoriais e chegando até os seminários e fóruns temáticos, os clamores dos povos da Amazônia se fizeram ouvir em defesa do ordenamento de seus territórios, especialmente os territórios tradicionais, apelando pela racionalidade do uso dos recursos naturais de acordo com a proposta da Ecologia Integral comprovada na vivência dos Povos Tradicionais dessa região.
As escutas sinodais revelam que existe atualmente na Amazônia dois modelos de sociedades contraditórios. O primeiro é o projeto dos grandes grupos econômicos vinculados aos produtores rurais, especialmente os sojicultores e agropecuaristas. Para estes, a Amazônia é um negócio lucrativo e seu território está destinado ao monocultivo baseado num sistema devastador e depredador da floresta, não se importando com sua degradação e desertificação agravada pelas mudanças climáticas. Neste modelo o que importa é o lucro.
O segundo modelo de sociedade é baseado na Ecologia Integral praticado pelos agricultores de produção familiar que pensam o território para uso coletivo. Neste modelo, as práticas de cultivo e coleta de recursos naturais são baseadas no cuidado e no respeito pela natureza como parte da vivência coletiva.
Para estes povos indígenas, camponeses, afrodescendentes, quilombolas, seringueiros, ribeirinhos, pescadores, ambientalistas e gente simples das periferias das cidades, a Amazônia é a casa comum de todos os povos. Neste modelo não existe riqueza acumulada nem pobreza. Todos e todas vivem do resultado do trabalho cotidiano, sem acumulação e sem exclusão.
O modelo de sociedade baseado na Ecologia Integral nos desafia a nos deixar amazonizar, para amazonizar as cidades, o coração da Igreja e dos governantes, e o mundo inteiro.
Nesse sentido, amazonizar é o projeto que se contrapõe à internacionalização da Amazônia. Significa garantir os direitos humanos dos povos que vivem e convivem diariamente com as florestas, rios e lagos sem desmatar, queimar ou contaminar. Significa outro modo de vida não capitalista que garante direitos e dignidade para todas as pessoas num modelo de sociedade includente, justo e fraterno. Por tudo isso, amazonizar é o verbo do tempo presente assimilado e reconhecido no Processo Sinodal.
Amazonizar também é poesia como enfatiza o amigo Benedito Alcântara da Comissão de Direitos Humanos do Amapá. Para Bené, como é conhecido entre amigos:
“Amazonizar é deixar-se alimentar da gratuidade da mãe terra panamazonica, pachamama, a casa comum, que nos oferece a cada dia seus cheiros, seus orvalhos, suas águas, suas sementes, sua umidade, suas sombras, planícies, campinas, montes e colinas, sua mata densa e misteriosa, suas lonjuras, reentrâncias, retas desvairadas, casebres isolados, vilas desgarradas. Mas que também nos oferece seus gemidos de dor que vem das grandes cidades inchadas e abafadas, medonhos projetos com montes de mentiras, gente de tantos rostos e origens, peregrinos de lá pra cá, violências de toda sorte, pedintes e maltrapilhos vagando na multidão, templos fechados e barulhentos, suor-lágrima e sangue! Amazônia: só te conhece quem te vive! Deixemo-nos amazonizar profundamente!. Sigamos Navegantes! Alimentando-nos do pão da vida partilhada, da pupunha com farinha, da castanha com tapioca. Deixemo-nos Amazonizar nessa Amazônia profunda!”
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.