Por Fábio Zanini, da Folhapress
SÃO PAULO – De um lado, a menina Anya e o cãozinho Galt. Do outro, uma Estátua da Liberdade mirim e seus amiguinhos Sr. Livro e Tochita, uma pequena tocha sorridente. Os personagens infantis são protagonistas de uma disputa de marcas no Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) que envolve o empresário Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, e uma entidade educacional de direita sediada em Goiânia, o Instituto Liberdade e Justiça.
Hang, conhecido por seus ternos extravagantes e pela proximidade com o presidente Jair Bolsonaro, lançou no ano passado a Turminha da Liberdade, uma série de vídeos de animação num canal no YouTube. Uma pequena Estátua da Liberdade, símbolo da cadeia de lojas, canta musiquinhas infantis com seus amiguinhos, no estilo Galinha Pintadinha.
O problema é que já existia, desde 2018, outra Turminha da Liberdade, criada pelo advogado Giuliano Miotto, presidente do instituto goiano.
Esta Turminha é personagem de dois livros infantis, que têm uma ambição mais ampla do que apenas divertir as crianças. Pretendem passar conceitos como responsabilidade, empreendedorismo e a virtude do lucro, além de valores de respeito à família e à hierarquia.
Os livros são releituras de clássicos do liberalismo. Em janeiro de 2019, saiu “Anya e o Mistério do Sumiço de Galt”, cuja referência é o clássico “A Revolta de Atlas”, da russa Ayn Rand.
Seis meses depois, foi a vez de “Antônio e o Segredo do Universo em Seis Lições”, inspirado em “As Seis Lições”, do austríaco Ludwig von Mises. A história está centrada no “Rei dos Churros”, que ensina às crianças, por exemplo, que nunca distribui seus doces de graça, porque isso seria recompensar quem não está dando duro para ganhar seu sustento.
No final do ano passado, Miotto foi surpreendido com o surgimento da Turminha do dono da Havan. “Começou a criar uma confusão, pessoas me procurando para perguntar sobre vídeos e personagens que não eram meus”, afirma.
Ele diz que procurou advogados da Havan para tratar do assunto, mas reclama de ter sido ignorado.
Seu argumento principal se baseia numa sequência de datas. Miotto protocolou no Inpi a marca Turminha da Liberdade em 22 de junho do ano passado, três meses antes de a Havan fazer o mesmo, em 30 de setembro de 2019.
Registros em redes sociais dão vantagem ainda maior ao goiano.
Ele criou páginas da Turminha no Facebook e no Instagram no mesmo dia, 19 de novembro de 2018. A página homônima da Havan no Facebook é apenas de 28 de junho de 2019.
No caso do Instagram, é de 31 de agosto de 2019, com um truque sutil: a empresa de Hang chamou de “Turminha da Liberdade Oficial”.
Também no último dia de agosto do ano passado entraram no ar os primeiros vídeos da Estátua da Liberdade mirim e de seus amiguinhos cantores. Já são 28 clipes, de musiquinhas como “O Sapo Não Lava o Pé” e “Pintinho Amarelinho”. Todos estão reunidos no canal Havan Kids, que tem 232 mil inscritos.
Miotto diz que ficou indignado. “Imagine se eu montasse aqui na esquina uma lojinha da Havan. Eu estaria sendo processado por eles no dia seguinte, amanheceria com advogados na porta. É um desrespeito”, diz.
Por enquanto, o presidente do instituto goiano quer buscar um acordo e evitar um processo judicial. Nesta sexta-feira, 31, sua advogada enviará uma notificação extrajudicial para a Havan, pedindo que os vídeos sejam retirados do ar até que se chegue a algum acordo. Também enviará suas alegações sobre o caso ao Inpi, que analisa a disputa.
A ideia é pleitear uma indenização por uso indevido de marca e uma compensação financeira caso a Havan queira seguir usando o nome.
Seu objetivo, diz Miotto, é investir em seu instituto, que tem caráter educacional. “Eu faço tudo praticamente sozinho, dependo de doadores. Eles são uma empresa comercial enorme”, declara.
Cada livro tem tiragem de cerca de 2.000 exemplares, que são vendidos pelo site do instituto. Também há distribuição para bibliotecas de escolas públicas.
Ele diz ter certeza de que não se tratou de uma coincidência. “Saíram reportagens sobre meus livros em diversos lugares. E quando eles foram registrar a marca, já havia a minha no Inpi. Impossível não saberem”, afirma.
O processo está em aberto no Inpi, sem prazo para resolução. Em média, um caso como esse pode levar até dois ou três anos para uma decisão final.
A advogada Renata Oliveira, especializada em propriedade intelectual e que representa o instituto goiano no caso, afirma que a Havan teria que provar o uso anterior da marca. “Mas não vejo como vão fazer isso. Teriam que mostrar que já usavam Turminha da Liberdade seis meses antes do registro do meu cliente, como manda a lei [9279/96]”, afirma.
Miotto afirma que vai esperar um pouco uma resposta da Havan à sua proposta de acordo, mas em caso de ter seu pedido negado ou ignorado, adotará o caminho judicial. “Eu estou fazendo um projeto social. Não vou abrir mão disso só porque acham que podem passar por cima”, afirma.
A reportagem entrou em contato com a assessoria da Havan para que comentasse o caso, mas a empresa se recusou. Disse apenas que “em contato com o setor jurídico, a rede optou por não fazer manifestação em relação a um processo que ainda está em discussão”.