Por Anna Virginia Balloussier, da Folhapress
SÃO PAULO – Os ônibus saíram lotados. A certa altura, se enveredaram por uma estrada erma. De repente, entraram homens encapuzados, com fuzis. Mandaram todos sair. O chão lá fora era de lama. Os sequestradores lembravam soldados do Estado Islâmico.
Um conto cristão de terror se instalou. Xingaram mulheres, às vezes idosas, de lixo. Um malfeitor questionou, ao grito, se as pessoas eram crentes. Melhor que não fossem.
Dormia-se num alojamento mal-ajambrado. De manhã, um café frio e sem açúcar, o pão sem manteiga. No jantar, sopa de pé de galinha servida numa cumbuca improvisada com fundo de garrafa PET.
Em dado momento, o grupo chegou ao que parecia ser uma igreja clandestina. Ouviu-se uma explosão. Durante todo o tempo imperou o clima de medo. Uma jovem foi torturada e morta, ou ao menos deu-se a entender assim. Outra, estuprada. Cortaram a língua de uma missionária e a jogaram na mão de um homem – um pedaço de carne ensanguentada.
Um pedido era reiterado sempre que possível pelos raptores: nega Jesus!
A experiência, relatada à Folha em julho por um participante, foi arquitetada pela Comunidade Bíblica Internacional, igreja sediada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Era tudo encenação: uma fantasia aterrorizante para fazer o fiel sentir na pele o que é uma nação sem liberdade religiosa, como se o cristianismo no Brasil também estivesse a perigo.
Uma “mistura de campo de concentração nazista com acampamento do Jim Jones”, nas palavras desse membro que odiou a vivência. Jones foi o líder de uma seita que, em 1978, levou quase mil pessoas ao suicídio, com a ingestão de suco com cianureto.
Em nome de Jesus, algumas igrejas evangélicas decidiram radicalizar. Existem hoje uma miríade de projetos que carregam o sufixo “radical”: Impacto Radical, Influência Radical e por aí vai.
A representação montada pela igreja de Duque de Caxias se chama Onda Radical. A reportagem entrou em contato, pelo telefone e rede social, com o pastor Eduardo Vieira, um dos responsáveis. Ele manteve uma postura desconfiada, que se repetiu toda vez que a reportagem procurou algum porta-voz dessas ações.
Após apagar mensagens que escreveu, Vieira deu uma resposta sintética sobre o propósito daquilo tudo: “O que posso lhe dizer é que existem centenas de igrejas e projetos que seguem a mesma temática teatral, que há anos vem impactando vidas de muitas pessoas: adictos libertos de vícios, casamentos destruídos sendo restaurados, famílias desfragmentadas sendo unidas em prol do Evangelho”.
Tamanha reticência em falar sobre as ondas radicais que inundam a periferia evangélica tem explicação. Há o medo de que, uma vez exposto na mídia, o movimento seja estigmatizado. E também o risco de arruinar o elemento surpresa das performances.
Em São João do Meriti (RJ), a Primeira Igreja Batista em Éden promove o Atitude Radical, descrito como “um acampamento ricamente abençoador” onde todos “serão tratados como cristãos da igreja perseguida”.
Regras do jogo: não pode mulher grávida e menor de 18 anos. Esqueça o conforto (“tudo faz parte do processo”) e se prepare para “atividades que exigirão esforço físico, emocional e psíquico”. Há etapas para menores, o Atitude Radical Júnior (8 a 11 anos) e o Ateentude Radical (12 a 17 anos).
Tudo começou em 2010, quando 17 líderes da igreja foram enviados para um projeto inspirado no Acampa Underground, simulação desenvolvida pela Missão Portas Abertas, uma organização cristã internacional.
Um vídeo divulgado pela entidade dá spoilers de uma dinâmica semelhante à narrada pelo integrante do Onda Radical. Fiéis no meio do mato, barulhos de tiros e algozes de trajes muçulmanos.
Em 2021, a mineira Comunidade Evangélica Nova Vida lançou o Trem Radical. O evento começou com música eletrônica e o anúncio do pastor: “Chegou o dia! Fica de pé aí, seu crente lerdo! Tamo junto!”.
O telão exibiu um recado do pastor Arildo Borges Xavier, da irmã Atitude Radical. “No Rio, dizemos que o crente que vem fazer o Atitude Radical, ele leva um tranco. É como se a gente pegasse nos ombros de cada crente e dissesse: você está brincando de ser crente, você vai aprender agora como ser um servo de Jesus”.
A apresentação do Impacto Radical, de uma igreja batista de Belford Roxo (RJ), lembra um filme da Marvel. Frases de efeito dramático saltam na tela (“você ora? tem fé?”) acompanhadas de uma trilha heroica.
Recomenda-se levar Bíblia, roupa de cama, travesseiro, toalha, tênis velho, roupa, remédios indispensáveis, alimentação “de uso pessoal” e “muita disposição e coragem”.
Projetos assim estão longe do consenso no segmento. Muitos desconhecem que existam. O presidente da bancada evangélica não tinha ideia do que eram até a reportagem perguntar o que achava deles.
O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) se disse chocado ao ouvir o relato sobre a Onda Radical. “Esse povo não pode ser considerado evangélico, tem que ser considerado terrorista”.
Pedro Luís Barreto Litwincsuk, o pastor Pedrão, da Comunidade Batista do Rio, vê os circuitos radicais como evolução de um retiro organizado pelo G12, modelo de células evangelizadoras popularizado pelo pastor colombiano César Castellanos.
Os chamados Encontros com Deus já tinham a meta de evangelizar por meio de sensações fortes. “Você tinha que largar celular, deixar tudo, e lá eles tinham várias simulações. Até fingir que tinha um parente morto seu no caixão, [falavam] ‘tá vendo, tá morto, você não falou de Jesus, essa pessoa vai pro inferno, a culpa é sua’”.
Pedrão considera a autointitulada via radical, com “o choque de gestão que você dá no cara”, um exagero. “Eles querem mostrar o perigo que as pessoas correm, a igreja perseguida. Mas a Bíblia fala ‘não por força nem por violência, mas pelo Espírito’.
É preciso assinar um termo de consentimento para participar dessas práticas. Algumas aceitam menores de idade, desde que acompanhados. Era o caso da ancorada pela Comunidade Internacional Bíblica, que questionava se a pessoa é cristã ou afastada do Evangelho, se tem problemas de saúde e se já se vacinou contra a Covid.
A sétima edição da Onda Radical está marcada para 30 de setembro a 2 de outubro, ao custo de R$ 170. O termo explica que, por meio de encenações, o indivíduo será “confrontado com suas próprias mazelas e caprichos” e desafiado a “tomar atitudes corretas de um verdadeiro cristão”.
Kathielly Azevedo esteve na quinta edição. Numa rede social, postou imagens antigas suas, tristonha com vestes de religiões afro-brasileiras ou bebendo álcool, e fotos atuais dela sorridente vestindo a camisa da Onda Radical. “Deus marcou um encontro comigo e me fez perceber que não havia nada de bom em mim”, escreveu na legenda.
Ela é lacônica quando conta à Folha sobre o acampamento, como se não quisesse quebrar o pacto de silêncio em torno do programa. “Deus nunca disse que a jornada seria fácil, mas Ele disse que a chegada valeria a pena”.
Agradeço por não ser evangélico!