Na sequência da reflexão sobre ideologia, cabe abordar o contraponto desse tema e especular sobre a dimensão de sua necessidade, o papel que ela cumpre na explicação ou disfarce do real. Na conceituação clássica, ideologia é a falsa consciência em relação ao mundo real. É um movimento intelectual que frequentemente naufraga no exercício de compreensão da consciência e de sua relação com o mundo – ou seja, a ideologia comprova a incapacidade da consciência de se reconhecer como mediação e origem material num determinado processo histórico. Recordemos que toda cultura, com suas linguagens, representações, convicções e dúvidas tradicionais, determinam um horizonte de ideias possíveis. O pensamento ideológico é aquele que, sem saber destas determinações, constrói uma concepção qualquer do mundo. Imagina-se, por suposto, que suas ideias são expressões diretas de sua subjetividade, emolduradas por uma razão livre, consciente, e que nela reside as respostas para os problemas do mundo – enquanto, na verdade, o ocorrido, nos aspectos gerais do mundo, oriundos de suas relações materiais de produção, é que determina o que as pessoas podem pensar ou não.
Os grandes gênios da história se estabelecem como tais na medida em que trabalham essa tênue fronteira entre o óbvio e o inimaginável. Ao exercerem grandes lampejos, grandes saltos, verdadeiros insights, podem escapar assim, sutilmente, por alguns segundos, de si, e das determinações do pensamento, e portanto realizar grandes avanços espirituais. Ou seja, em condições normais de temperatura, amargura ou pressão, não há nenhum ser humano capaz de se ver totalmente livre da falsa consciência. Não há um só homem ou mulher capaz de esgotar intelectualmente a realidade como tal. Os fenômenos serão sempre mais profundos, ricos e complexos do que as meras abstrações de qualquer teoria que busque representar a realidade em sua integralidade.
Pois então, mais uma vez, nossa relação com mundo se mostra fascinante: é debruçado nessa junção de falsas representações, que se pode, através do trabalho racional e do conhecimento da história, tomar consciência das contradições presentes na realidade, que são vividas e constitutivas do nosso modo de ser e se colocar no mundo. E assim então, trabalhar para resolvê-las. E de tal modo cabe mais uma vez dizer: nessa constatação, do que se faz necessário ser superado, e no poder de exercer mudanças, é que reside nossa sutil liberdade.
Diante de tudo isso, amplia-se a fundamental importância da colaboração que somente a filosofia pode nos dar. Visto que se deve reconhecer os limites do conhecimento, ao mesmo tempo que se adquire noção do que precisa ser feito. Isso é práxis: a relação dialética entre a teoria e a prática. Conjuntos teóricos que querem explicar e transformar o real, e que se reciclam a cada tentativa e frustração de absorvê-lo. A filosofia não deve mais exclusivamente se trancar dentro de castelos, desmembrados do mundo real, para assim tentar assimilá-lo, dissecar suas contradições… Ela deve ser ácida e ousada – trabalhar numa desconstrução construtiva. A filosofia só terá utilidade real – e deste ponto de vista, algum sucesso – quando fizer seu trabalho no mundo concreto. Para que possa, além de se reciclar, contribuir para fazer eclodir um mundo real e melhor.
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