Na raiz de graves problemas de corrupção do sistema político-eleitoral do país, no qual se baseia a legitimidade da mediação política, está o financiamento privado de campanhas eleitorais.
A imensa dependência de candidatos a cargos eletivos de patrocínio privado, principalmente de empresas interessadas em supercontratos e outras “oportunidades”, eiva de viciados esquemas o funcionamento das instituições de mediação política e as atividades da administração pública, nas diferentes áreas, impactando sobremaneira a qualidade das políticas públicas, dos serviços públicos e da própria gestão governamental. Algo notoriamente escancarado em operações policiais, sobretudo com a “lava-jato”. Assim, chegou-se ao ponto de política tornar-se cronicamente caso ou problema de polícia.
Porém, apesar de tantas operações policiais e das muitas fases da “lava-jato”, quase nada se empreendeu efetivamente em termos de reforma política. Pelo contrário, não são poucos os que entendem as medidas legislativas e alterações realizadas constituíram muito mais uma contra-reforma política do que algo em benefício de um sistema eleitoral e representativo de melhor qualidade. Alega-se que as providências legislativas adotadas acabaram por fortalecer o poder dos “caciques” de partido político ao invés de democratizar as relações intra-partidárias.
Em reação às medidas ultraconservadoras da contra-reforma política em curso, expande-se a compreensão de que a única forma de promover a democracia na disputa eleitoral é assegurar a efetiva igualdade de condições entre os candidatos que concorrem nas eleições, dificultar a compra de votos e a privatização de mandatos, os quais usurpam a representação dos cidadãos e violam frontalmente a soberania popular. Para tanto, postula-se que providência imprescindível a ser adotada é o fim do financiamento privado de campanhas eleitorais e a padronização do uso de recursos do fundo partidário para fins de participação isonômica dos candidatos nas eleições.
Inexiste equilíbrio numa eleição quando um candidato participa da mesma apenas com os recursos do fundo partido e outro que concorre com toda uma gama de recursos financeiros e econômicos, sejam próprios sejam oriundos de particulares.
Não se visualiza justiça nem democracia eleitoral na hipótese de um candidato participar com 5 ou 10 mil reais pra financiar a campanha enquanto outro concorre com 500 mil, 1 milhão, 5 ou 10 milhões de reais. Isso, na prática, torna viciada a disputa eleitoral. Algo abusivo, antidemocrático e demagógico. Uma espécie de vício eleitoral em favor de quem dispõe de mais recursos. Por essa via, abre-se a porta pra todo tipo de esquema de corrupção, inclusive esses todos que a operação ‘lava-jato’ escancarou.
Torna-se necessário, com isso, eliminar o financiamento privado de campanhas eleitorais e o patrocínio particular a candidatos, criando assim obstáculos à compra de votos e à estruturação de esquemas voltados à corrupção sistêmica, que se institucionalizam e, com o tempo e a habitualidade, naturalizam-se.
Nesse sentido, é preciso extirpar das leis eleitorais e administrativas as “brechas” ou contextos legais que oportunizem expressa ou informalmente que certas máfias institucionalizadas operem em favor da compra de votos e da patrimonialização de mandatos, contribuindo assim para romper com os viciados ciclos de clientelismo e plutocracia que caracterizam historicamente as eleições no Brasil.
Isso seria uma concreta medida com vistas a frustrar a perpetuidade dos esquemas de corrupção que iniciam desde o financiamento privado de campanhas eleitorais. Aliás, a origem do dinheiro nem sempre é lícita ou oriunda de atividade empresarial regular. O dinheiro pode vir de todo tipo de “lugar”, inclusive resultante de atividades ilícitas e até mesmo de organizações criminosas. Essa é uma situação extremamente grave. Por conta dela, assim como de outras, passa da hora do país realizar uma efetiva reforma política.
Impedir o financiamento privado de campanhas eleitorais e o patrocínio particular de candidaturas é medida imprescindível para a reforma das instituições de mediação política no país. Chegou-se ao ponto de exaurimento do atual modelo de representação política e de financiamento eleitoral. É preciso romper com a viciada jogatina política: a venda de mandatos, a compra de votos e os esquemas de corrupção. Há coisas muito mais relevantes, sobretudo a dignidade humana de cada cidadão e a soberania do povo brasileiro.
Democracia não é pra ser uma mera encenação política, legitimada por um jogo eleitoral viciado, mas um regime que efetivamente produza resultados na qualidade de vida das pessoas e opere em favor do desenvolvimento do país. É preciso um sistema representativo e um modelo de financiamento de campanhas eleitorais coerente com esse propósito. Por isso, importa democratizar as eleições, assegurando a igualdade de condições de disputa entre os candidatos, o fim do financiamento privado de campanhas eleitorais, da compra de votos e de mandatos.
Deve-se lembrar que existe dinheiro público, recursos de mídia e de comunicação disponibilizados pras campanhas eleitorais, além do fundo partidário. É desnecessário o patrocínio particular de candidaturas. Eleição não é pra ser cassino nem loteria, seja de candidato seja de empresa ou de eleitor pessoa física. Cumpre utilizar os recursos do fundo partidário e destinados aos meios de mídia. É suficiente! Mais que isso conduz ao abuso do poder econômico e da publicidade para privatizar mandatos, manipular escolhas e comprar votos, o que resulta em fraudes ao processo eleitoral e na usurpação da soberania popular.
Não se pode ficar inerte e justificar nosso atual padrão de patrocínio de candidaturas apenas porque existem modelos de financiamento privado de campanhas eleitorais noutros países. Se pra esses o modelo funciona, tudo bem. O que importa é que pra nós, além do mesmo não funcionar, ele tem convertido a experiência democrática no Brasil num grande faz de conta, uma encenação demagógica, e concretamente resultado apenas no viciamento no jogo eleitoral e na corrupção sistêmica, que envolve as composições pós-eleitorais, as instituições de mediação política e a dinâmica de funcionamento da gestão pública. É fundamental que o país tenha a capacidade de construir um sistema de representação popular e de financiamento eleitoral compatível com fins da democracia.
Necessita-se inovar responsavelmente o sistema de financiamento eleitoral brasileiro. Não é porque as eleições sejam financiadas por particulares nos EUA, que esse seja o melhor modelo pra nós. A realidade deles é uma, a nossa é outra. Lá, o voto sequer é obrigatório, o que faz uma grande diferença. Além disso, o processo eleitoral nos EUA não serve de exemplo para o nosso, pois lá o candidato que recebe o maior número de votos dos eleitores não é necessariamente o que vence as eleições. Às vezes, até a suprema corte pode dar o mandato pra outro, como ocorreu no caso em que o Al Gore ganhou a eleição, aquele que era vice do Bill Klinton, mas quem levou a presidência foi o George Bush, que agravou a situação planetária em diversas áreas e intensificou a globalização da indústria bélica e do terror. Mais ainda, sob o aspecto procedimental, o risco de manipulação do voto escrito em folha de papel é muito maior do que na urna eletrônica, não há como comparar em termos de segurança. No aspecto eleitoral, os EUA não são um bom parâmetro pros demais países.
Enfim, é fundamental e urgente realizar, com responsabilidade, as mudanças no modelo de financiamento de campanhas eleitorais, aprimorar o sistema partidário e de representação em vigor no país, visando possibilitar que a orientação democrática alcance efetivamente os partidos, a representação popular, o processo de disputa e as campanhas eleitorais. São medidas essenciais, pois condicionam o comportamento político e as instituições de mediação política. O fim do financiamento privado de campanhas eleitorais é crucial para colocar o Brasil na perspectiva da experiência democrática.
Pontes Filho é Cientista Social
Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial do AMAZONAS ATUAL.