Da Folhapress
SÃO PAULO – Ziel Karapotó tinha mais de 18 anos quando pisou em um cinema pela primeira vez. Menos de uma década depois, aos 26, ele deixou as poltronas das salas para se sentar atrás das câmeras.
Indígena karapotó, do aldeamento Terra Nova, no agreste alagoano, Ziel é diretor do curta-metragem “O Verbo se Fez Carne”, no qual ele aparece sozinho em cena, usando as vestimentas tradicionais do seu povo, enquanto manipula uma bíblia e uma língua de boi.
Mistura de filme e performance, já que o diretor é também artista visual, o curta fala de maneira alegórica sobre o etnocídio sofrido por algumas populações e foi selecionado para o Inffinito Festival, que neste ano recebe uma mostra dedicada inteiramente ao cinema indígena.
O caso de Ziel se repete com cada vez mais frequência no país. De um lado, está o amplo acesso à internet e à tecnologia no país, o que fez cineastas de diversos povos conseguirem produzir nos últimos anos seus próprios filmes sem a presença dos estúdios e das produtoras. De outro, estão os próprios festivais, interessados em apresentar narrativas mais diversas e fora do eixo.
De acordo com o diretor karapotó, esses novos filmes costumam provocar estranhamento no público, acostumado há décadas a ver a questão indígena retratada nas telas a partir de um viés antropológico e pela ótica de artistas que veem tudo de fora.
“A gente precisa ressignificar o cinema, que muitas vezes só colabora para a invisibilidade e o apagamento”, diz. “É hora de utilizá-lo para falar das nossas lutas.”
Graciela Guarani, que está em cartaz no mesmo festival com o documentário “Meu Sangue É Vermelho”, concorda com Ziel e acredita não ser possível pensar no cinema contemporâneo indígena sem ser pelo viés militante e como uma ferramenta política para dar visibilidade a opressões –sofridas não apenas por essas populações, mas também por negros, mulheres ou grupos LGBT.
Mesmo assim, ela diz sonhar em construir narrativas sobre outros temas. “Quero que um dia as pessoas possam desfrutar da nossa arte sem a condicionante de ela levar a voz da sobrevivência, que está tão impregnada em tudo o que a gente faz hoje.”
O longa de Graciela apresenta a trajetória do rapper guarani Kurumin MC. O músico, nascido em uma aldeia no extremo sul de São Paulo, canta sobre a demarcação de terras e a atual situação indígena no Brasil –e ficou famoso quando, na Copa do Mundo de 2014, no Brasil, apareceu em campo com uma faixa na qual estava escrito “demarcação já”.
O longa traça ainda um paralelo com as violações de direitos humanos sofridos por povos na região do Mato Grosso do Sul, onde a diretora nasceu, e termina com um trecho de um pronunciamento feito em 1988 pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, em que ele afirma que a cavalaria brasileira foi incompetente por não ter exterminado todos os indígenas.
Bolsonaro, aliás, é figura presente em uma série desses filmes. Para Graciela, o atual governo ameaça a sobrevivência de todas as populações indígenas. “Isso tem sido tratado com certa normalidade por parte do governo –e é muito assustador. É um projeto genocida,” diz.
A política brasileira atual grita também em “Ivy Reñoy – Semente da Terra”, dirigido coletivamente pela Associação Cultural de Realizadores Indígenas, a Ascuri, que está em cartaz no Cine Kurumin, festival dedicado ao cinema indígena.